“Ó os polícia, ó os polícia”, alerta um homem enquanto filma três helicópteros sobrevoando um acampamento de garimpeiros ilegais na Terra Indígena Yanomami.
“É três ‘blackhawkzão’, três!”, prossegue o narrador, referindo-se ao modelo da aeronave militar. “Todo mundo, vamos se esconder, agora o bicho pega”, ele diz.
Os vídeos do canal, 120 ao todo, foram postados nos últimos três anos, período de forte crescimento da mineração ilegal em terras indígenas, apesar de operações policiais pontuais.
No território yanomami, onde se estima que haja até 20 mil garimpeiros, a atividade ganhou visibilidade nas últimas semanas após denúncias de violência sexual contra mulheres e meninas indígenas.
Rotina do garimpo
Os vídeos do canal “Fabio garimpo Junior” mostram garimpeiros à vontade diante das câmeras durante seus trabalhos, ainda que garimpar em terras indígenas seja crime passível de prisão.
Sem esconder o rosto, eles discursam em defesa do garimpo e criticam a repressão à atividade, muitas vezes ecoando posições do presidente Jair Bolsonaro.
Os vídeos mostram ainda como o garimpo na terra yanomami ganhou uma escala industrial nos últimos anos.
As gravações mostram helicópteros e aviões privados transportando os garimpeiros até as minas ilegais (não há acesso terrestre ao território).
Nos garimpos, máquinas pesadas abrem grandes clareiras na Floresta Amazônica e rios são desviados na busca por ouro e cassiterita. Alguns acampamentos parecem minicidades, com eletricidade e internet.
Segundo a Hutukara Associação Yanomami, a área desmatada por garimpeiros dentro do território indígena cresceu 46% em 2021 em comparação com o ano anterior.
A atividade, porém, implica sérios riscos para os garimpeiros. Dois vídeos mostram helicópteros a serviço do garimpo em destroços após caírem na floresta.
Outras filmagens mostram manobras arriscadas de barcos com garimpeiros subindo corredeiras, helicópteros descendo em pequenas clareiras e aviões pousando sob forte chuva.
As cenas são exaltadas no canal como exemplos da coragem e perícia dos envolvidos.
Perseguições com tiros
A rotina nos garimpos no território yanomami também abarca perseguições com tiros.
Um vídeo publicado em janeiro de 2020 tem como título “Piloto no garimpo do Uraricoera tenta fugir do Exército brasileiro”.
As imagens mostram um piloto que navegava em alta velocidade enquanto era perseguido por um barco com quatro soldados no Uraricoera, principal rio do território yanomami.
Após quatro disparos, um homem na margem do rio grita: “Pegou, pegou”. Ouvem-se então outros dois tiros, mas o vídeo termina sem que seja possível ver se o piloto foi realmente atingido nem qual foi o desfecho da perseguição.
Outra versão dessa cena, publicada em fevereiro de 2022, envolveu um carro da Polícia Militar de Roraima que perseguia em alta velocidade um pequeno avião num aeroporto não identificado.
Segundos após a decolagem, ouve-se um disparo, mas a aeronave prossegue o voo, aparentemente ilesa.
Garimpeiro youtuber
O canal no YouTube que exibe os vídeos existe desde janeiro de 2018 e tem 324 inscritos. A última gravação foi publicada em 28 de abril de 2022.
Em vídeo de agosto de 2021, o dono do canal se apresenta como Fábio Júnior Rodrigues Faria e se define como garimpeiro, mas diz ter a ambição de viver como youtuber.
“Se um dia futuramente der, vou viver disso, mostrando a realidade do garimpo, mostrando a dificuldade que os garimpeiros passam”, ele afirma no vídeo.
Faria aparece em vários vídeos num dos maiores garimpos no território yanomami, conhecido como garimpo do capixaba. O local foi alvo de sucessivas operações nas últimas décadas – a última delas, em março de 2021, quando o Exército destruiu uma pista de pouso usada por garimpeiros.
Mas as operações não foram capazes de paralisar os trabalhos. Os vídeos mostram que, assim que as forças de segurança deixam os acampamentos, os garimpeiros saem dos esconderijos nas matas para retomar as atividades.
Ao se esconder, costumam levar consigo o ouro extraído e motores que usam para garimpar. Os equipamentos que ficam para trás costumam ser queimados pelos agentes.
Um vídeo de outubro de 2021 mostra uma distribuição gratuita de cerveja a garimpeiros logo após forças de segurança deixarem um acampamento, quando parte do local ainda estava em chamas.
“Pode pegar que tá liberado”, diz um homem, ele próprio com duas latas na mão. “Aqui é por conta da (Polícia) Federal”, ironiza.
Outras gravações mostram acampamentos de garimpeiros em outras áreas do território yanomami, como nos rios Catrimani e Uraricoera.
Procurado por meio de seu canal no YouTube, Faria não respondeu as perguntas da BBC.
Na última tentativa de contato, na última quarta-feira (11/05), a BBC postou no canal uma mensagem questionando se Faria estava ciente das penas para o garimpo ilegal em terras indígenas.
No dia seguinte, porém, a mensagem tinha sido deletada.
Problema histórico
Com área equivalente à de Portugal, a Terra Indígena Yanomami abriga cerca de 27 mil membros dos povos yanomami e ye’kwana, que vivem em 331 aldeias.
O território ocupa porções do Amazonas e de Roraima e se estende por boa parte da fronteira do Brasil com a Venezuela. A região é alvo de garimpeiros desde ao menos a década de 1980.
A atividade viveu um declínio com a demarcação da terra indígena, em 1992, mas voltou a crescer nos últimos anos.
Eleitor de Bolsonaro
No vídeo em que se apresenta, Faria se declara eleitor do presidente Jair Bolsonaro. “Em 2022, é Bolsonaro na cabeça, vai arrebentar de novo”, afirma.
Em outro vídeo, quando se escondia na mata durante uma operação policial, o garimpeiro critica as forças de segurança e torce para que o presidente tome providências. “Espero que nosso presidente Bolsonaro veja isso”, afirma.
Em várias ocasiões, Bolsonaro defendeu a aprovação de um projeto de lei – atualmente em debate no Congresso – que regulamentaria a mineração em terras indígenas.
O presidente também costuma criticar órgãos de fiscalização ambiental e afirmar que garimpeiros “não são bandidos”, mas sim trabalhadores em busca de melhores condições de vida.
Discurso semelhante é ecoado pela categoria. Nos vídeos do canal, Faria e colegas dizem que os garimpeiros são perseguidos injustamente.
“Muita gente crucifica o garimpeiro, (diz) que o garimpeiro é sem vergonha, mas em nenhum momento você vê que a Bíblia condena o garimpo”, diz Faria.
“Pelo contrário, Deus ama o ouro e deixou isso aqui que é pra tirar mesmo”, defende.
A BBC questionou a Presidência da República sobre o conteúdo do canal e as menções dos garimpeiros a Bolsonaro, mas não houve resposta.
Interação com indígenas
Embora os vídeos tenham sido gravados dentro do território yanomami, são raros os momentos em que indígenas aparecem nas gravações.
Numa dessas ocasiões, Faria e colegas se depararam com uma mulher e três crianças yanomami enquanto atravessavam um riacho numa pinguela.
“Ó os índios da tribo aí”, disse o garimpeiro. “Uma fome, miséria”, afirmou.
Os indígenas aguardavam a travessia dos garimpeiros, esperando por sua vez para cruzar o rio.
Bem mais comuns que os encontros são as menções a indígenas nos discursos de Faria.
No vídeo em que se apresenta, o garimpeiro se refere aos indígenas como “uma raça de gente imunda” e os acusa de “roubar” os garimpeiros.
“É uma raça de gente que não merece você nem dar um prato de comida para eles”, afirma. “São bandidos”.
Um líder indígena yanomami ouvido pela BBC comentou a declaração.
“A população indígena yanomami não é bandida, não estamos colocando em risco a vida de ninguém, não estamos invadindo a terra de ninguém. Quem está invadindo são os garimpeiros”, afirmou o indígena, que preferiu não ter o nome revelado por motivos de segurança.
Ele afirmou ainda que a existência do canal mostra que os garimpeiros “não têm medo de ninguém”.
“Eles não têm medo da PF (Polícia Federal), não têm medo de mostrar os rostos. Eles sabem que não vão responder absolutamente (por crimes), que não vão ser presos”, diz o indígena.
Questionado pela BBC, o YouTube disse que “conteúdos que incentivem a violência ou ódio contra pessoas” com base em características como etnia ou religião não são permitidos na plataforma, mas não comentou a exposição de cenas de garimpo ilegal no canal.
“Quando não há violação à política de uso do YouTube, a análise final sobre a remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet”, afirmou a empresa.
O YouTube disse ainda que o canal do garimpeiro está “sob análise”.
Penas para o garimpo ilegal
A Constituição de 1988 determina que a exploração mineral em terras indígenas só pode ocorrer se for regulamentada por leis específicas. Como as leis jamais foram aprovadas, a atividade é ilegal.
Envie seu comentário