O campo cultural no Brasil apresenta contradições jurídicas que demandam atenção daqueles que atuam nesta área do conhecimento. A que mais chama a atenção é o fato, agora evidente pelo contexto legislativo, de que o país possuía um Plano Nacional de Cultura – PNC – (Lei nº 12.343/2010), mas não dispunha de um Sistema Nacional de Cultura – SNC – para operacionalizar a sua execução, sendo que o próprio PNC indica o SNC como o seu principal articulador federativo, com o estabelecimento de mecanismos de gestão compartilhada [1].
Este hiato jurídico perdurou por 14 anos e apenas superado formalmente com a edição da Lei nº 14.835/2024 que institui o Marco Legal do Sistema Nacional de Cultura, que na sua estrutura conceitual aponta a existência de três dimensões: a dimensão cidadã, a dimensão econômica e a dimensão simbólica, replicando os eixos norteadores do Plano Nacional de Cultura que consistiam na: a) cultura como expressão simbólica; b) cultura como direito de cidadania; e c) cultura como potencial para o desenvolvimento econômico.
A ideia do PNC transposta para o SNC é adotar uma concepção ampliada de cultura como fenômeno social e humano de múltiplos sentidos que está ancorada nessas três dimensões. No presente texto aborda-se a dimensão simbólica prevista no SNC que é definida na referida lei como sendo o “conjunto de bens que constituem o patrimônio cultural do País, que abrangem os modos de viver, fazer e criar dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” [2].
Neste sentido, há uma contradição entre a propalada adoção de uma concepção ampliada quando a Lei do SNC limita a dimensão simbólica aos bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro e, mais restritivo ainda, quando indica que tais bens abrangem apenas os modos de viver, fazer e criar. Ou seja, o referido dispositivo legal acabou por mutilar o campo de abrangência da dimensão simbólica da cultura, reduzindo-o a uma parcela diminuta do patrimônio cultural, quando sequer deve ficar restrito a ele.
No caso, a dimensão simbólica da cultura deve abranger os bens jurídicos tutelados pelos direitos culturais que se encontram expressamente previstos no artigo 215 da Constituição de 1988 ao afirmar que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”, e cujo conteúdo é seccionado por Humberto Cunha Filho [3] em três campos: o das artes, das memórias coletivas e dos fluxos de saberes.
Logo, o apoio, o incentivo, a valorização e a difusão das manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e dos demais grupos formadores da sociedade brasileira são alcançados pela dimensão simbólica das suas respectivas manifestações culturais e não apenas aqueles abrangidos pelos bens que constituem o patrimônio cultural.
A dimensão simbólica da cultura encontra nos símbolos o seu elemento constitutivo que para Pierre Bourdieu [4] correspondem aos “instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação […], eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social […]”.
Desta feita, o patrimônio cultural na sua dimensão simbólica exerce esse papel de instrumento de conhecimento e de comunicação, mas o faz primordialmente sob a perspectiva das relações afetas à memória coletiva, mas a cultura e os direitos culturais possuem outros campos como os atinentes às artes e aos fluxos de saberes que igualmente contemplam dimensões simbólicas, mas que estão excluídas na definição dada pela lei do SNC.
Assim, o marco legal do SNC adota uma concepção restrita de cultura ao limitar a sua dimensão simbólica à seara do patrimônio cultural, o que demandará do intérprete da norma jurídica o esforço exegético para evidenciar que o seu texto disse menos do que deveria dizer, sendo necessário uma interpretação ampliativa para que a dimensão simbólica da cultura corresponda aos bens jurídicos tutelados na abrangência dos direitos culturais que envolvem as artes, as memórias coletivas e os fluxos de saberes.
Allan Carlos Moreira Magalhães Doutor em Direito. Professor da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA/UEA). Colíder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais (GEPDC/UNIFOR). Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). É coautor do livro “É disso que o povo gosta: o patrimônio cultural no cotidiano da comunidade”
Notas:
[1] Cf. Art. 3o,, § 1o, da Lei 12.343/2010
[2] Cf. Art. 2º, I da Lei 14.835/2024.
[3] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Cultura e democracia na Constituição Federal de 1988: a representação de interesses e sua aplicação ao programa nacional de apoio à cultura. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004, p. 34.
[4] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 10.
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