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Ribeirinhos vivem desafios de acesso à saúde bucal no Amazonas

Quase um quarto dos ribeirinhos às margens do Rio Negro não foi ao dentista nos últimos três anos; alguns sequer tiveram acesso a serviços odontológicos alguma vez na vida, indica estudo
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Foto: Marinha do Brasil

A proximadamente um quarto dos indivíduos que vivem em comunidades ribeirinhas na zona rural de Manaus (AM) não foi ao dentista nos últimos três anos — alguns sequer tiveram acesso a serviços odontológicos alguma vez na vida, apesar dos esforços do governo federal para levar equipes de saúde a áreas remotas e de difícil acesso do Brasil.

A conclusão consta de um estudo publicado em janeiro na revista Rural Remote Health por pesquisadores do Instituto Leônidas e Maria Deane da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e das universidades Federal do Amazonas (Ufam) e do Estado do Amazonas (UEA).

Eles entrevistaram 492 pessoas de 38 comunidades espalhadas pela margem esquerda do Rio Negro. O objetivo era verificar o perfil socioeconômico e de saúde dessas populações, a frequência com que utilizavam serviços odontológicos e as dificuldades que enfrentam para acessá-los.

A identificação dos fatores que afetam o acesso à saúde bucal dessas comunidades é importante porque pode contribuir para o desenvolvimento ou aprimoramento de estratégias de promoção da saúde em outras comunidades que compartilham as mesmas características de isolamento ou semi-isolamento social, cultural e econômico.

As comunidades analisadas estão situadas em áreas de cobertura das Unidades Básicas de Saúde Fluviais, embarcações adaptadas para funcionar como unidades de saúde. De tempos em tempos, elas visitam comunidades dispersas em áreas isoladas e de difícil acesso na Amazônia Legal (que abrange nove estados brasileiros) e no Pantanal Sul Mato-Grossense para realizar atendimentos.

Cada embarcação conta com pelo menos um médico, um enfermeiro, um técnico ou auxiliar de enfermagem, um cirurgião-dentista e um técnico ou auxiliar de saúde bucal.

Lançado em 2004 pelo Ministério da Saúde no âmbito da Política Nacional de Saúde Bucal, esse arranjo organizacional avançou na cobertura da saúde bucal na atenção primária no Brasil, ajudando a reduzir as desigualdades de acesso à saúde nos rincões do país.

Mais do que isso: reforçou a importância de investir em abordagens de saúde direcionadas a grupos específicos e historicamente excluídos dos serviços de saúde.

Ainda assim, aproximadamente 22% dos entrevistados afirmaram ter usado serviços de saúde bucal pela última vez há mais de três anos, ao passo que 3,1% nunca foram ao dentista.

Dos que procuraram atendimento odontológico por conta própria nos últimos anos, 36,9% o fizeram por prevenção; outros 22,4% porque estavam sentindo dores e 20,6% porque precisavam extrair algum dente.

Os pesquisadores verificaram que 34,4% dos entrevistados tinham perdido mais de 12 dentes e 10,4% já estavam desdentados.

Os resultados estão em linha com dados nacionais. Um estudo publicado em 2022 na revista Community Dentistry and Oral Epidemiology, com base em dados da população brasileira, constatou que 48,4% das pessoas com 18 anos ou mais foram ao dentista há mais de um ano e 2% nunca utilizaram esse tipo de serviço.

O padrão é diferente em relação ao uso de serviços odontológicos públicos. “Apenas 23,1% da população brasileira utilizaram serviços públicos na sua última consulta, diferentemente do que foi observado nas populações ribeirinhas”, destaca a cirurgiã-dentista Maria Helena Rodrigues Galvão, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e uma das autoras do artigo publicado na Community Dentistry and Oral Epidemiology.

“Isso indica que os serviços públicos são a principal forma de acesso à saúde bucal para essas pessoas, e que, portanto, devem ser reforçados e ampliados”, diz Galvão.

Problemas bucais têm raízes sociais e econômicas

No estudo divulgado na Rural Remote Health, mais da metade dos entrevistados (58,7%) relatou ter apenas o ensino primário, enquanto 12% nunca frequentaram a escola. Pouco mais da metade da população vivendo nessas comunidades (53,4%) tinham renda familiar inferior a um salário-mínimo.

“Níveis mais baixos de escolaridade e renda costumam estar associados a um baixo uso dos serviços de saúde em geral e há evidências de que essa relação seja ainda mais marcante nas zonas rurais”, destaca o cirurgião-dentista Diego Cordeiro, doutorando em Saúde Pública na Ufam e um dos autores do estudo.

Na avaliação de Galvão, os achados do estudo reforçam a ideia de que os problemas bucais têm profundas raízes sociais e econômicas.

“Fatores culturais e geográficos também estão altamente associados a padrões de condições de saúde, bem como ao reconhecimento subjetivo da doença”, diz a pesquisadora da UFPE.

No caso das populações ribeirinhas, essa situação se agrava pelo fato de elas viverem em áreas muito isoladas. As pessoas nessas comunidades com frequência precisam se deslocar por até 30 horas — dependendo das condições hidrológicas e meteorológicas — até a cidade mais próxima para conseguir ter acesso a serviços de saúde.

Muitos evitam se aventurar em viagens longas à área urbana em razão dos custos de transporte e do tempo de deslocamento. Os que se arriscam, não raro, atrasam-se para as consultas, baseadas na ordem de chegada, e ainda precisam arcar com os custos extras de transporte, hospedagem e alimentação.

Na maioria das vezes, o que resta são os serviços das Unidades Básicas de Saúde Fluviais. A estratégia tem contribuído para promoção do acesso à saúde bucal e diminuição das desigualdades em saúde nessas regiões.

“No entanto, nossos resultados sugerem que os serviços que elas oferecem ainda estão centrados na resolução de problemas, seja uma dor de dente ou uma extração, não na prevenção”, afirma Cordeiro, da Ufam.

“O modelo de atenção à saúde deve ser reorganizado de modo a superar esse modelo tradicional, incorporando estratégias mais abrangentes de promoção da saúde, favorecendo a adoção de escolhas saudáveis, de forma a diminuir a ocorrência dos agravos e transformando a necessidade dos serviços de saúde bucal”, acrescenta Cordeiro.

Os desafios são enormes, segundo Fernanda Campos de Almeida Carrer, professora da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Observatório de Recursos Humanos em Odontologia e do Observatório Ibero-americano de Políticas Públicas de Saúde Bucal.

“As Unidades Básicas Fluviais são importantes, mas não dão conta de todas as comunidades”, afirma. “Algumas são tão isoladas que é quase impossível acessá-las, sobretudo quando o nível do rio está baixo.”

A reportagem do Science Arena entrou em contato com a Secretaria de Saúde do Amazonas a fim de saber das iniciativas para ampliar a oferta de unidades fluviais na região, mas não obteve retorno.

Dificuldade na retenção de profissionais

A estratégia também é pouco efetiva quando se trata de casos que requerem tratamento de longa duração, uma vez que estes exigem acompanhamento periódico — o que é quase impossível, pois pode levar até 30 dias para ir e voltar de uma comunidade.

Soma-se a isso as dificuldades para atrair e reter profissionais de saúde nessas áreas, também conhecidas como “vazios sanitários”.

“Profissionais recém-formados têm mais interesse por trabalhar em locais isolados ou de difícil acesso, mas logo desistem quando percebem que não têm apoio ou orientação técnica para auxiliá-los”, comenta Carrer, da USP. 

Nos últimos anos, ela e outros pesquisadores do Observatório de Recursos Humanos em Odontologia têm se dedicado a levantar evidências que respaldam o desenvolvimento de estratégias para atrair e reter mais profissionais de saúde nessas regiões.

“Temos observado que não adianta apenas oferecer um bom salário. Sem apoio técnico e infraestrutura, continuaremos tendo dificuldade para atraí-los”, diz a pesquisadora.

O governo, na sua avaliação, precisa investir em pacotes de intervenção mais completos.

“Estamos falando de cursos de capacitação e apoio técnico, que permita a esses indivíduos recorrer, à distância, a profissionais com mais experiência para tirar dúvidas ou buscar orientação em relação a determinados procedimentos e tratamentos para casos específicos”, destaca Carrer.

“Não é só uma questão de salário. Outras coisas é que pesam”, ressalta a pesquisadora.

Ao mesmo tempo, enfatiza Carrer, é igualmente importante criar condições favoráveis às famílias desses profissionais, de modo que eles se sintam mais confortáveis a mudar para regiões distantes dos centros urbanos.

“Alguns países concedem até bolsas de estudo aos filhos desses indivíduos, subsidiam seus custos com moradia, entre outras vantagens”, destaca.

Tais medidas costumam ter prazo de validade de aproximadamente dois anos. “Mesmo com incentivos, muitos decidem se mudar ou voltar para centros urbanos com mais infraestrutura”, afirma Carrer.

“Não tem problema que isso aconteça, desde que as políticas públicas estejam preparadas para repor esse profissional e manter a cobertura de saúde na região.”

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