Uma recente pesquisa conduzida pelo programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará (Ufpa) expõe profundas contradições dos brasileiros nos temas do meio ambiente e dos povos indígenas.
A maioria dos entrevistados apresentou preocupações positivas e legítimas sobre temas como povos indígenas, preservação ambiental e emergência climática. Alguns exemplos: 76,3% disseram discordar total ou parcialmente da proposta de permitir garimpo em terras indígenas (o que confirma uma alta repulsa identificada em outras pesquisas sobre o mesmo assunto), hoje em debate no Supremo Tribunal Federal (STF) por decisão do ministro Gilmar Mendes; 80% disseram que o governo federal deveria dar “muita prioridade” ao tema do aquecimento global e apenas 2,2%, “nenhuma” prioridade; 76,7% disseram discordar total ou parcialmente da proposta de aumentar o número de agrotóxicos permitidos no Brasil; e 57,6% discordaram total ou parcialmente da proposta de diminuir as regras de licença ambiental para as obras de governos e empresas.
A imagem de uma suposta conscientização ambiental, contudo, entra em choque com as respostas que os entrevistados deram sobre política e modelo econômico para a Amazônia. Quando foram indagados se já votaram em algum candidato “devido às causas ambientais que ele defende”, 64,7% disseram que não. (Deve-se reconhecer que, num país que deu 58 milhões de votos a um político negacionista climático, anti-indígena e pró-garimpo, Jair Bolsonaro, o resultado não chega a impressionar.)
Em outros pontos da pesquisa, 69,9% dos entrevistados disseram que o agronegócio é “positivo” para a Amazônia e a maioria, 55,3%, afirmou concordar total ou parcialmente com a proposta de aumentar a área permitida por lei para a agricultura na Amazônia (apenas 34,2% discordaram da ideia). A partir de respostas como essas, desmorona a ideia de uma suposta sólida preocupação manifestada pelos entrevistados sobre preservação ambiental.
Essa imagem também é colocada em xeque quando os entrevistados demonstram um profundo desconhecimento sobre dois temas presentes no noticiário há vários meses. Do total de entrevistados, nada menos que 59,3% disseram que não ouviram falar sobre “a proposta de criar um marco temporal para a posse [sic] de terras indígenas no Brasil”. Já está bem demonstrado pela ciência que as terras indígenas são barreiras eficazes contra o desmatamento.
Da parcela que ouviu falar sobre “marco temporal”, metade concorda e metade rejeita a tese jurídica já declarada inconstitucional pelo plenário do STF.
Em outro tópico, quase a metade dos entrevistados, 49,7%, declarou nunca ter ouvido falar na “proposta da Petrobras de explorar petróleo na bacia da foz do rio Amazonas”. Dos 50% que ouviram falar, 18,7% concordaram total ou parcialmente.
Dos brasileiros ouvidos na pesquisa, 97,1% disseram estar informados sobre o aquecimento global, mas, dessa parcela, 54% reconheceram que têm um grau apenas “razoável” de informação e 23,2%, “pouco”.
A pesquisa “Valores ambientais e atitudes sobre a Amazônia” entrevistou, de abril a maio deste ano, um total de 1.789 pessoas por telefone (86,7%) e presencialmente (13,3%), com uma margem de erro de 2,32%.
Coordenada pelo professor Gustavo César Ribeiro, a pesquisa ouviu brasileiros de todas as regiões do país acima de 16 anos de idade. Ela foi financiada pela Meliore Foundation e pelo Projeto Procad Capes Amazônia.
O professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Ufpa Leonardo Barros Soares disse à Agência Pública que, de modo geral, a pesquisa retrata uma imagem positiva dos indígenas, por exemplo, ao reconhecer, pela ampla maioria dos entrevistados (75,4%), que os “indígenas são tão capazes de exercer cargos políticos quanto os que não são indígenas”. Ao mesmo tempo, porém, a maioria dos entrevistados tem uma visão bastante positiva e apoia a expansão do agronegócio na Amazônia, “o que cria uma espécie de caldo de cultura política favorável à abertura das terras indígenas para plantações de grande porte”.
Soares salientou a aparente contradição entre uma maioria de brasileiros pró-meio ambiente e as recentes votações expressivas em candidatos negacionistas da emergência climática em diversas regiões do país.
“Uma coisa é você se sentir informado, ouvir falar, e outra coisa é converter isso em ação e preferência políticas. Tenho a impressão de que o indivíduo pode até ter isso circulante nas suas mídias sociais, mas, quando vai à ação eleitoral propriamente dita, ele vai seguir as linhas ideológicas que estão postas hoje no Brasil. Parece que não consegue perceber a conexão da agenda política dos seus representantes políticos com o impacto na sua vida.”
Durante a live de lançamento dos resultados da pesquisa, no último dia 31, a professora Eugênia Rosa Cabral, doutora em ciência política, disse que os resultados da pesquisa “remetem para novas perguntas”. Citou as respostas favoráveis à expansão da área agrícola em áreas de preservação e a baixa adesão aos candidatos que defendem pautas ambientais surgirem ao lado da suposta preocupação dos entrevistados sobre a emergência climática.
“Acho que o resultado da pesquisa faz com que a gente reflita e, na verdade, reforce a crítica de que muito precisa ser feito para que a população compreenda, de fato, a complexidade que existe entre as atividades econômicas, que são estruturantes, que são fundamentais para a própria economia, e as decisões que são tomadas no âmbito do Congresso Nacional. É interessante como muitas pessoas entrevistadas disseram que não fazem nenhuma relação ou não optam por pautas que necessariamente coloquem ou deem relevância para a questão ambiental. Então, não fazem a associação com o que fazem os parlamentares em relação à licença ambiental, ao uso de agrotóxico e a tantas outras questões. […] Fiquei muito interessada em saber a que esse público que foi entrevistado atribui, por exemplo, o agravamento dos problemas ambientais ao longo dos últimos 40 anos no país.”
Na mesma live, o cientista social Lucas Okado, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Ufpa, chamou atenção para o recorte em relação à ideologia dos entrevistados. “A pesquisa traz resultados instigantes e, ao mesmo tempo, eu fiquei assustado e um pouco desesperançoso em relação ao nosso futuro climático.”
Conforme a pesquisa, apenas 31% dos entrevistados que se dizem de direita e de centro afirmaram votar em candidatos que defendem pautas ambientais. O resultado entre os que se dizem de esquerda, porém, não é expressivamente diferente (56,3%). Dos identificados como de esquerda, 41,7% disseram não votar em candidatos com preocupação ambientalista.
“No Brasil, a gente vive hoje um ambiente polarizado – esquerda e direita – onde as opiniões são bem cristalizadas. […] Mas essa polarização também é observada em relação aos valores ambientais? Infelizmente, não. Porque, se tivesse uma polarização, pelo menos a gente teria um grupo forte do outro lado, que se colocaria pau a pau ali no enfrentamento à destruição do meio ambiente que a gente está vivendo. E, aparentemente, não. Então isso me deixou extremamente pessimista em relação ao futuro dos meus filhos. Por quê? Quem defende o meio ambiente hoje? Aparentemente, muito poucas pessoas. E quem é contra? Toda a direita. Então a esquerda não tem ainda como prioridade essa preservação ambiental, enquanto a direita é muito favorável ao desenvolvimentismo, mesmo que esse desenvolvimento, essa flexibilização [inclua], por exemplo, a ocupação de terras em ampliação da área cultivável na Amazônia.”
Segundo a pesquisa, entre os entrevistados que se dizem de esquerda, 55,5% afirmaram ver como positivo o agronegócio na Amazônia. O resultado é quase o mesmo entre os que se apresentam como de centro (56,7%). Entre os eleitores de direita, o apoio é bem mais expressivo (85%).
“Aparentemente a direita não está nada preocupada com o meio ambiente. Mas, quando a gente olha para a esquerda, essa preocupação também não aparece ou aparece de forma residual. […] O meio ambiente entra na agenda pública, mas aparentemente as pessoas estão pouco informadas sobre essas questões, que são fundamentais”, disse Okado.
Para o professor, a pesquisa suscita um paralelo com o tema da democracia, que hoje “virou um valor e dificilmente alguém vai se dizer ou se colocar contra a democracia”. Aquelas pessoas que promoveram, em 8 de janeiro, a quebradeira dos prédios públicos e a tentativa de golpe de Estado, disse o professor, “com certeza, na visão delas, estavam tentando ‘salvar a democracia’”.
Da mesma forma, pergunta Okado, “como uma pessoa vai se colocar contra o combate ao aquecimento global?”. Cerca de 80% dos entrevistados disseram que o governo federal deveria colocar esse tema como prioridade. Contudo, a sequência das respostas demonstra “que as pessoas ainda estão pouco informadas” sobre o assunto, principalmente quando se indagou sobre “marco temporal” e petróleo na Amazônia.
“Então, como que se elenca prioridade ao combate ao aquecimento global [sem informação]? Essas informações que afetam essas pessoas, que afetariam o aquecimento global, aparentemente não estão chegando.”
A professora Eugênia Cabral comentou as declarações do colega. “Tu não estás sendo pessimista não, Lucas, tu és realista, estás sendo crítico realista. Porque, quando a gente pensa nessas, digamos, contradições que aparecem na pesquisa […], a gente fica se perguntando sobre quem são essas pessoas e que nível de informação elas têm sobre a complexidade dessa relação que existe sobre a forma pela qual grupos econômicos interagem ou se apropriam dos recursos da natureza.”
Para os pesquisadores, como se vê, a informação, ou, mais precisamente, a qualidade da informação, tem um papel fundamental nas percepções sobre meio ambiente, povos indígenas e preservação da Amazônia. Que possa, pela informação, ao menos surgir alguma luz no fim do túnel já é motivo de alguma esperança. No inferno das fake news que hoje nos cerca, é preciso também uma boa dose de otimismo para ainda acreditar que tem jeito.
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