Da lista de diferenças que separam Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro na condução da máquina pública, um dos tópicos é a forma de escolher o procurador-geral da República. Lula sempre escolheu o mais votado na lista tríplice da categoria, muito embora não exista essa obrigatoriedade na Constituição Federal. Bolsonaro prefere tratar a chefia da PGR (Procuradoria-Geral da República) como cargo de confiança – o que, diga-se, também não está previsto em lei nenhuma.
Diante da liderança do petista nas pesquisas de intenção de voto, a cúpula do partido tenta convencer Lula a mudar de estratégia na escolha do sucessor de Augusto Aras no comando da PGR, caso seja eleito para o Palácio do Planalto em outubro. O entorno do ex-presidente percebeu o óbvio: a vida do presidente de República é muito mais tranquila quando o chefe do Ministério Público é amigável.
Foi assim com Fernando Henrique Cardoso, que deixou Geraldo Brindeiro a cargo da PGR de 1995 a 2003. FHC não teve dor de cabeça: no período, nenhum político foi denunciado ao STF. Brindeiro poupou não apenas os aliados de Fernando Henrique, mas também os opositores. A PGR era uma espécie de braço do governo.
Passada a era Brindeiro, Lula chegou ao poder com a promessa de fortalecer o Ministério Público Federal. Não poderia fazer isso sem dar à categoria o poder de escolher seu próprio líder. E assim foi feito. Claudio Fonteles foi o primeiro procurador-geral do governo de Lula e começou a dar trabalho à classe política. Finalizou seu primeiro ano de mandato com 13 denúncias apresentadas ao STF.
A tarefa do procurador-geral não é apenas a de denunciar autoridades perante o STF. Ele também pode formular ações questionado a constitucionalidade de leis e normas e pedir abertura de inquéritos. Mas as denúncias são um termômetro objetivo da disposição do Ministério Público para incomodar poderosos.
Fonteles apenas iniciou a nova fase da PGR. Seu sucessor, Antonio Fernando de Souza, chegou ao auge ao denunciar 40 pessoas ao STF no mensalão, o esquema de distribuição de propina do governo Lula para arrebanhar apoio no Congresso Nacional. O então presidente da República foi poupado da investigação. Mas um dos alvos José Dirceu, ex-ministro-chefe da Casa Civil, acabou condenado.
Além do mensalão, Antonio Fernando apresentou 42 as denúncias ao STF enquanto estava no cargo, entre junho de 2005 e fevereiro de 2009. Assessores de Lula chegaram a alertá-lo para o perigo de dar tanta independência ao Ministério Público. Não funcionou. Quando o mandato de Antonio Fernando chegou ao fim, Lula escolheu Roberto Gurgel para o cargo. Era do mesmo grupo de Antonio Fernando e, a exemplo dos dois antecessores, tinha sido o mais votado na lista tríplice.
Em 2013, Dilma Rousseff manteve a tradição do PT e nomeou Rodrigo Janot chefe da PGR. Também ele era fruto da lista tríplice. Deu trabalho tanto para o governo, quanto para a oposição, ao desovar dezenas de denúncias da Lava Jato no STF. Boa parte não deu em nada ao final das investigações, mas a hiperatividade de Janot causou rebuliço no mundo político.
Em 2017, Michel Temer chegou ao Planalto rompido com o PT – inclusive no estilo de escolha do procurador-geral. Ele inovou ao escolher a primeira mulher para o cargo, Raquel Dodge. A simbologia progressista estancou na questão de gênero: o novo presidente ignorou a lista tríplice e optou por uma aliada, na esperança de não ter ainda mais problemas na justiça. Temer já tinha sido alvo de duas denúncias de Janot, no caso JBS e no quadrilhão do MDB.
O plano de Temer funcionou parcialmente: acabou denunciado por Dodge no inquérito dos portos, mas isso aconteceu a poucos dias do fim do mandato. A procuradora já tinha apresentado denúncia ao STF contra dois ministros de Temer: Geddel Vieira Lima e Blairo Maggi.
Mas nada, nada se compara ao desempenho amigável de Augusto Aras com Bolsonaro. Em poucos mais de dois anos no cargo, o procurador-geral conseguiu proteger o presidente de várias enrascadas jurídicas. Em dezembro, ele mesmo informou ao STF que instalou 25 investigações preliminares contra o presidente na PGR. Até agora, não denunciou o mandatário perante a Corte. Para completar o clima amistoso, em dezembro pediu para o ministro Alexandre de Moraes anular o inquérito aberto contra Bolsonaro pela fala em que associava a vacinação contra a Covid-19 à contaminação pelo vírus da Aids.
Aras também derrubou o desempenho da PGR perante tribunais superiores, o que lhe rendeu críticas contundentes de seus pares. Nos dois primeiros anos, o procurador-geral havia apresentado 46 denúncias ao STF e ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) contra autoridades. Dodge formulou 64 denúncias durante seus dois anos à frente da PGR.
Se Bolsonaro for eleito em outubro, não há dúvida de que a PGR seguirá comandada por procuradores com o perfil de Aras por mais quatro anos. Se a vitória for de Lula, o cenário será outro. A cúpula do PT ainda não convenceu o presidenciável a abandonar as listas tríplices como regra para a escolha do procurador-geral. Uma rápida análise no desempenho dos últimos procuradores-gerais pode servir de argumento para fazer o petista mudar de ideia.
Envie seu comentário