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“Preservar a Amazônia e degradar o Cerrado é uma estratégia suicida”, alerta Isabel Figueiredo

Para a ecóloga Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a estratégia é suicida.
Foto: Pixels

Em tempos de contagem regressiva dramática para os efeitos das mudanças do clima, enquanto cada redução do desmatamento do bioma Amazônia é celebrada, o Cerrado agoniza com a quebra sucessiva dos recordes de devastação. Para a ecóloga Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a estratégia é suicida. Os dois biomas estão profundamente interligados e todos dependemos da água que brota do Cerrado para sobrevivermos seja para matar a sede, seja para gerar a energia elétrica que ilumina e aquece (ou resfria) as cidades. Isabel é mestre em ecologia pela UnB, trabalha há 19 anos com conservação do Cerrado junto a povos e comunidades tradicionais para promoção de usos sustentáveis da biodiversidade e melhoria da qualidade dessas comunidades. Nesta entrevista ao Correio, ela alerta e sugere medidas urgentes para enfrentar o desafio da preservação do Cerrado.

Por que existe uma disparidade entre a queda do desmatamento no bioma Amazônia e no Cerrado?

O desmatamento no bioma Cerrado cresce por diferentes motivos e um deles é a permissividade do Código Florestal. O Cerrado é inversamente protegido em relação ao bioma Amazônia pelo chamado Código Florestal, a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei 12.651/2012). Nele, os imóveis rurais do bioma Amazônia têm proteção de 80% da vegetação, ou seja, o proprietário pode desmatar no máximo 20% para uso. Já no Cerrado, a proteção é de 20%, ou seja, 80% pode ser convertido para uso. No caso do imóvel rural de Cerrado localizado em algum estado da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão), a lei protege um pouco mais e permite supressão de até 65% da vegetação nativa. Esse é o motivo mais determinante dessa disparidade no desmatamento, mas tem também o fato de que os imóveis rurais no Cerrado são em grande parte privados. Tanto é que mais da metade (63,74%) do desmatamento no bioma se deu em propriedades privadas, segundo o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Então, o controle da supressão da vegetação e do cumprimento da lei ambiental fica a cargo dos estados, de forma descentralizada do governo federal e sem integração entre os sistemas. Mas isso é agravado pelo fato de as autorizações de supressão de vegetação nativa (ASVs) serem emitidas pelos estados sem rigor legal e com irregularidades, conforme mostrou estudo do Imaterra sobre as ASVs emitidas no estado da Bahia. Dessa forma, o bioma Cerrado acabou se tornando um bioma de sacrifício em prol do desenvolvimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país, com enormes áreas de expansão do agronegócio para exportação de commodities. Além disso, há uma imensa disparidade na preocupação da sociedade e dos tomadores de decisão sobre a proteção da Amazônia e do Cerrado. O que está se passando no Cerrado jamais seria admitido pela sociedade para a Amazônia.

Em que medida os sistemas dos biomas são interligados? Qual a consequência de preservar a Amazônia e degradar o Cerrado? É possível e viável essa estratégia?

É uma estratégia suicida, pois todos e todas dependemos da água que brota do Cerrado para sobrevivermos, seja para matar a sede, seja para gerar a energia elétrica que ilumina e aquece (ou resfria) as cidades. Oito das doze principais bacias hidrográficas do Brasil têm origem no Cerrado, cujo solo absorve as águas das chuvas que vêm da Amazônia e se infiltram pelas raízes profundas das árvores cerratenses e se armazenam nos aquíferos. Ao degradar o Cerrado, estamos degradando o nosso futuro, pois faltará água. Estudos já mostram isso e um em especial (Salmona, 2023) mostra que já perdemos 15% da vazão dos rios do Cerrado e que haverá uma perda de 34% da vazão de água no Cerrado até 2050.

O Cerrado é o segundo maior bioma do país, corresponde a um quarto do território nacional e é conhecido como a savana mais rica em biodiversidade do mundo. No imaginário de quem não conhece o Cerrado, predomina a imagem de uma vegetação rala e seca, de árvores baixas e tortas, sem beleza, utilidade ou valor – seja social, econômico ou ecológico. Porém, nele encontra-se uma variedade imensa de paisagens belas cenicamente e de fauna e flora conhecidas por gerações e gerações pelo potencial alimentar, medicinal e utilitário. Entre os cerca de 20 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem na região, estão os povos e as comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, extrativistas, etc), que com séculos de experiência no convívio sustentável com o bioma são os verdadeiros detentores do conhecimento sobre conservação ambiental com uso sustentável. Existe um potencial enorme de geração de renda a partir dos frutos, fibras, óleos, remédios e castanhas do Cerrado, que contribui para a inclusão social e a conservação ambiental.

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