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Para PGR, União deve custear procedimentos sem transfusão de sangue já incorporados ao SUS

Debate vai além dos aspectos relacionados à recusa de transfusão de sangue por questões religiosas
Foto: Freepik

A União pode ser parte demandada em ações judiciais envolvendo protocolos alternativos no sistema de saúde público, sendo o poder público responsável por custear os tratamentos apenas se forem oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, deve ser respeitada a recusa à transfusão de sangue em procedimento médico, baseada na liberdade religiosa de uma pessoa informada dos riscos. Esse é o entendimento do procurador-geral da República, Augusto Aras, em processo que trata de conflito entre a liberdade religiosa e a obrigação do governo de garantir cuidados de saúde para todos, de forma igual, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF).

O parecer pelo desprovimento de recurso da União foi apresentando em caso que discute o Tema 952, da Sistemática da Repercussão Geral, em que a Suprema Corte analisa se é justo e razoável, de acordo com as regras da Constituição, que o direito de seguir uma religião (amparado no inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal) possa ser usado como razão para o governo pagar por um tratamento médico que não está disponível na rede pública, embora incorporado como política pública.

O caso que originou o Tema 952 teve início no Amazonas, quando um paciente ingressou com ação ordinária para ter custeada pelo poder público cirurgia sem transfusão de sangue fora do domicílio do paciente e em outra unidade da Federação. O paciente teve confirmada pela Turma Recursal do Juizado Especial Federal do Amazonas a sentença que condenou a União, o Estado do Amazonas e o Município de Manaus a arcarem conjuntamente com as despesas (incluindo passagens e diárias para o acompanhante) do procedimento cirúrgico, a ser realizado em hospital público ou privado que execute a operação sem necessidade de transfusão sanguínea.

Caso o parecer do PGR seja acolhido pela Suprema Corte, a decisão também valerá para outros processos que tenham pedidos semelhantes ao do paciente do Amazonas.

Competência da União – O primeiro ponto a ser discutido no processo é se a União tem competência para ser parte demandada em ações judiciais sobre protocolos alternativos em procedimentos disponibilizados pelo sistema público de saúde. A União alega afronta aos arts. 196 e 198 da CF, tendo em vista que os estados e os municípios teriam responsabilidade exclusiva quanto à disponibilização de medicamentos aos pacientes.

No entanto, para o PGR, a União pode ser acionada em processos que envolvam procedimentos cirúrgicos sem usar transfusões de sangue, nos casos em que o SUS oferece esses procedimentos. Isso é apoiado tanto pelo princípio da solidariedade (atuação conjunta dos diferentes níveis de governo na área da saúde, conforme estabelecido pela Constituição nos artigos 196 e 198), pela jurisprudência do STF, quanto pela competência do Ministério da Saúde para incorporar, excluir ou alterar pelo SUS procedimentos, bem como constituir ou alterar protocolo clínico ou diretriz terapêutica, conforme disposto no artigo 19-Q da Lei 8.080/1990).

O parecer argumenta que a legitimidade da União também se justifica como forma de viabilizar a efetiva implementação de uma política pública nacional para procedimentos hemoterápicos (que envolvem sangue). Isso ajuda a corrigir desigualdades e assegurar que todos tenham acesso justo aos serviços de saúde em todo o país, reforça o documento.

“A competência da União vai além do estabelecimento de uma política pública sobre determinado direito fundamental, uma vez que também envolve a garantia da sua eficiência e a busca por viabilizar meios para que seja assegurada a sua implementação pelos entes federados”, diz trecho do parecer.

Alternativas à transfusão e liberdade religiosa – Em relação à impossibilidade de custear procedimentos sem a transfusão de sangue alogênico (sangue de outra pessoa), o PGR argumenta que o sistema de saúde do Brasil já tem opções de realização de procedimentos que não precisam de transfusão. Essas opções foram incluídas no sistema com a implementação de políticas públicas e atos normativos.

O parecer registra que os estados do Ceará e São Paulo oferecem essas alternativas para pacientes que não querem receber sangue por causa de suas crenças religiosas. Eles possibilitam as alternativas por meio do programa Patient Blood Management (PBM), recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e ratificado pela Anvisa.

Segundo o PGR, afirmar que uma pessoa não pode usar um serviço público já incorporado nacionalmente e até oferecido em outro estado da Federação vai contra o princípio de que todos devem ter igual acesso aos serviços de saúde. Isso também contraria o direito de cada um ter a sua própria crença, a responsabilidade do governo de cuidar da saúde e o princípio de não tratar as pessoas de forma diferente por causa de onde são ou do que acreditam, defende o parecer.

Augusto Aras argumenta que o dever do poder público de custear meios alternativos para a realização de procedimento sem transfusão de sangue alogênico vai muito além de garantir o pleno exercício da liberdade de crença. “Mais do que uma escolha do paciente quanto ao protocolo que deseja seguir, trata-se de buscar o meio pelo qual se pode concretizar, da forma mais adequada, os direitos à saúde e à manifestação religiosa”, ressalta.

O parecer também informa que há de se ter ainda em conta dados que demonstram a escassez dos estoques dos bancos de sangue no Brasil, além das evidências que corroboram para as vantagens de se evitar a transfusão alogênica sob os pontos de vista do médico, da instituição hospitalar e do paciente.

Tese de repercussão geral – Tendo em vista os argumentos apresentados, o procurador-geral da República defende as seguintes teses:

1 – A União tem legitimidade para figurar no polo passivo das demandas que versarem sobre protocolos alternativos em procedimentos incorporados pelo sistema público de saúde, tendo em conta a sua competência para incorporar, excluir ou alterar os medicamentos, produtos e procedimentos previstos no SUS (art. 19-Q da Lei 8.080/1990), assim como o princípio da solidariedade dos entes federados nas ações de saúde;

2 – desde que manifestada por pessoa titular de plena capacidade civil, capaz e devidamente informada dos riscos envolvidos, há de ser resguardada, pelos que decidirem livremente exercer a sua liberdade religiosa, a recusa ao recebimento de transfusão de sangue em procedimento médico, mas a obrigação do poder público de arcar com tratamento alternativo somente alcança aqueles disponibilizados a todos pelo sistema público de saúde.

Sistemática da Repercussão geral – Os casos que são escolhidos para representar a controvérsia são exemplos bem significativos, chamados de “leading cases”. Eles vão ser afetados pela repercussão geral, que tem como objetivo tornar o processo judicial mais rápido e fazer com que as decisões sejam semelhantes em situações parecidas. A partir dessa premissa, os tribunais superiores vão analisar as teses jurídicas e questões objetivas que aparecem nesses casos importantes.

Depois que são decididos esses assuntos, as decisões dos casos principais vão valer também para outros processos. A ideia é que as decisões jurídicas sejam mais previsíveis e seguras, garantindo que situações semelhantes tenham soluções similares. Isso diminui a quantidade de processos no Supremo Tribunal Federal.

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