É preciso saber que crime cometeu Damares Alves, ex-ministra e senadora eleita pelo Distrito Federal. E quando. O que é inequívoco? O crime foi cometido. E o caso envolve o presidente Jair Bolsonaro. No que diz respeito ao mandatário, há uma hipótese de uma nova imputação não se juntar à sua extensa ficha: Damares ter mentido. Vale dizer: O “Mito” só não será cúmplice de Damares — ou ela dele, já que é o chefe — se ela estiver mentindo e fazendo terrorismo eleitoral.
Qual é o caso? Em um culto evangélico, no sábado passado, na igreja Assembleia de Deus Ministério Fama, em Goiânia (GO), Damares afirmou que crianças na Ilha de Marajó (PA) são vítimas de tráfico e têm seus dentes “arrancados pra elas não morderem na hora do sexo oral”, além de só comerem “comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal”.
“Todo mundo pergunta: por que Bolsonaro está fazendo o maior programa de desenvolvimento regional na Ilha do Marajó? Porque ele tem uma compreensão espiritual que vocês não têm nem ideia. Fomos para a Ilha do Marajó. E lá nos desobrimos que nossas crianças estavam sendo traficadas por lá. Marajó faz fronteira com o mundo: Suriname, Guiania (sic). Eu vou contar uma coisa para vocês que agora eu posso falar. Nós temos imagens de crianças nossas, brasileiras, de 4 anos, 3 anos, que, quando cruzam as fronteiras, sequestradas, os seus dentinhos são arrancados para elas não morderem na hora do sexo oral. Essa é a nação que a gente ainda tem, irmãos. Nós descobrimos que essas crianças comem comida pastosa para o intestino ficar livre para a hora do sexo anal.”
Marajó não faz fronteira com Suriname e Guiana, que ela pronuncia “Guiania”. Quem é esse “nós” que detém essas imagens? O relato da ex-ministra — feito, inclusive, na presença de crianças que estavam no culto — diz respeito a casos investigados pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos?
Ciente, então, dessas barbaridades — mais uma das aberrações saída da boca de Damares –, cabe indagar:
– O Ministério acionou a Polícia Federal?
– Um inquérito foi aberto para investigar esses crimes horrendos?
– Por que o Ministério Público Federal jamais foi notificado?
– Onde estão essas crianças? Foram resgatadas?
– Os pais receberam algum tipo de assistência e proteção?
– Se essas crianças foram sequestradas e levadas para Suriname e Guiana, o Ministério das Relações Exteriores foi notificado? Fez alguma coisa?
– Tendo havido o que ela relata e em se tratando de tráfico internacional de crianças, o Ministério da Justiça foi notificado?
Segue Damares.
“Bolsonaro disse: ‘Nós vamos atrás de todas elas”, e o inferno se levantou contra esse homem.”
Nesse ponto, ou se admite que Damares está mentindo, que está inventando, que está apenas apelado à forma mais vil do discurso do ódio para tentar ligar opositores, imprensa, Supremo e até o Congresso à pedofilia — e vou dizer aqui de onde vem tal prática –, ou, então, ela e o presidente são dois prevaricadores, que atuaram para proteger pedófilos. Indaga-se:
– Onde estão as providências tomadas por Damares e Bolsonaro?
– Onde estão esses pedófilos?
– Onde estão os documentos indicando que a então ministra e seu chefe tomaram providências?
Notem que, na sequência, o discurso passa a ser escancaradamente eleitoreiro. Depois de chocar o seu rebanho com sua imaginação delirante e pavorosa, ela descamba para a fala de palanque. E comete um erro grave:
“A guerra contra Bolsonaro, que a imprensa levantou, que o Supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem, não é uma guerra política. É uma guerra espiritual. E eu estou falando numa igreja. E eu tenho o manto constitucional para me expressar dentro da minha igreja. Tem coisas que eu não posso falar lá fora, mas aqui eu tenho a liberdade constitucional de manifestar a minha fé.”
Jurisprudência do TSE assegura que, mesmo dentro da igreja, as pessoas possam expressar individualmente suas convicções políticas, mas a Lei Eleitoral veda que se use a estrutura dos templos para propaganda partidária. Nesse caso, no entanto, trata-se de algo muito mais grave.
Damares está dizendo que tomou ciência do cometimento em série de crimes de extrema gravidade. E, que se conheça, não tomou providência nenhuma. E inexiste imunidade para o falso testemunho ou para o relato de casos estupefacientes de prevaricação, na hipótese improvável de que fale a verdade.
Se Damares pensa ainda em se escudar na imunidade para dizer qualquer barbaridade, convém que note:
1 – O Artigo 53 da Constituição assegura a imunidade ao parlamentar a partir da diplomação — e ela ainda não foi diplomada:
2 – Já é jurisprudência firmada da Corte que:
a: a prerrogativa não serve para acobertar crimes;
b: a prerrogativa não alcança crimes cometidos antes do mandato ou que não guardem relação com ele.
Logo, à diferença do que diz esta senhora, o manto constitucional não garante que ela confesse impunemente a prevaricação.
Ela prossegue.
“Continuei, continuei abrindo as gavetas do Ministério e descobri, irmãos, o horror. Eu descobri que, nos últimos sete anos, explodiu no Brasil o estupro de recém-nascidos. Nós temos imagens lá no Ministério, irmãos, de crianças de oito dias sendo estupradas. Nós descobrimos que um vídeo de estupro de crianças custa entre R$ 50 mil e R$ 100 mil. Tem um crime organizado envolvido nisso. Tem sangue. Tem morte. Tem sacrifício.”
Que tipo de coisa o Ministério de Damares andava colecionado, colhida na “deep web”, abismos a que muitos de seus aliados devem recorrer, já que íntimos da guerra suja? Ainda está falando de crianças brasileiras da Ilha de Marajó ou apenas se estende a detalhes grotescos do mundo-cão para assustar seus “irmãos” e para lhes pedir que votem em Bolsonaro?
Damares parece sentir especial prazer moral em apelar a imagens que chocam a audiência e em dar respostas exóticas para questões graves. Em 2019, ela se referiu ao estupro de meninas justamente na Ilha de Marajó. E, como é evidente, não reportou as coisas que agora diz no templo. Chegou à conclusão, para espanto dos especialistas e das pessoas que lutam para proteger a infância, que havia muitas meninas estupradas no local porque não usavam calcinha.
Sem desbaratar nenhuma rede criminosa ou pedir investigação, ela teve uma ideia para resolver, então, a questão do estupro de meninas: instalar no local uma fábrica de calcinhas. Eis Damares!
Mais um trecho da sua fala:
“E Bolsonaro se levantou contra todas estas potestades. A gente agora como igreja. A gente tem aqui uma decisão pra tomar. A gente vai continuar esta luta e tirar essas crianças das mãos de Moloch ou nós vamos entregar esta nação?”
Se é que como diz Damares, ela demonstra, pois, por que Bolsonaro não pode ser reeleito. Se descobriram a barbárie em estado puro e nada fizeram; se descobriram o horror e se calaram; se chegaram à lama moral mais abjeta e não acionaram as autoridades competentes para dar a resposta — e Bolsonaro, como nenhum outro, tinha a autoridade para fazê-lo —, então prevaricaram. O que devo supor?
Que os dois têm seus pedófilos de estimação?
Moloche, ou Moloque, era uma entidade cultuada pelos amorreus, aos quais se ofereciam crianças em sacrifício. No discurso de Damares, são apenas os adversários de Bolsonaro.
NÃO PODE FICAR ASSIM
O Ministério Público Federal no Pará (MPF) cobrou, nesta segunda, informações ao Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos sobre os supostos crimes sexuais denunciados por Damares. É evidente que não vai colher informação relevante nenhuma porque é visível que ela está fazendo campanha eleitoral. Avisou, como se percebe, que se considera “coberta pelo manto constitucional”.
Um grupo de advogados ligados ao Prerrogativas — Fernando Hideo Lacerda, Marco Aurélio de Carvalho, Gabriela Shizue Soares de Araújo e Fabiano Silva dos Santos — encaminhou uma petição a Augusto Aras, procurador-geral da República, para que se apure a fala da ministra.
O texto aponta, com correção:
“A fala de DAMARES REGINA ALVES, por si só, deve ser objeto de investigação criminal pelo sistema de Justiça brasileiro. Se for verdade que (…), ela e o presidente da República tiveram conhecimento de tamanha atrocidade e só agora trouxeram ao conhecimento público, sem terem tomado qualquer providência, deve-se apurar a prática do crime de prevaricação, nos termos do artigo 319 do Código Penal.
Por outro lado, não se pode descartar a possibilidade real de suas falas não passarem de mentiras deslavadas com objetivo de alimentar discursos de ódio e tumultuar o processo eleitoral, razão pela qual deve ser intimada a apresentar provas do que alegou e listar as pessoas que no momento oportuno tomaram conhecimento desses fatos, dado que alega inclusive que ‘nós temos imagens, lá no ministério, de crianças de oito dias sendo estupradas'”.
Que se note: Damares estava acompanhada de Michelle Bolsonaro, que fez coro à tal “guerra espiritual” que estaria em curso.
LUNÁTICA, MAS COM MÉTODO
Damares sabe que está, sim, cometendo um crime. Mas aposta que Augusto Aras vai segurar a sua barra e que nada vai lhe acontecer porque estaria resguardada pela imunidade.
Insisto: ou ela cometeu um pavoroso crime comum, ao tempo que não era senadora, e tem de responder por ele na Justiça comum porque anterior ao mandato e sem nenhuma relação com este — prevaricação diante do horror mais abjeto —, ou está cometendo crime de natureza eleitoral.
Em qualquer caso, Aras nada pode fazer por ela. Mas a PGR pode, sim, quando menos, cobrar esclarecimentos ao presidente. O procurador-geral vai surpreender?
Isso tudo tem método. Repetem-se no Brasil as táticas empregadas nos Estados Unidos pelos psicopatas do QAnon, que dizem existir uma organização secreta, que reuniria políticos, artistas e financistas, para a prática da pedofilia, do satanismo e do canibalismo. Os demônios estariam todos no Partido Democrata, e só mesmo os republicanos de extrema-direita poderiam detê-los. Trump seria o grande inimigo dessa conspiração.
Percebam que Damares mimetiza por aqui a mesma sandice de lá. Não faz isso sozinha. Estava ao lado de Michelle. Flávio Bolsonaro se encarregou de espalhar o seu discurso sem se dar conta de sua essência criminosa — crime que pode alcançar seu pai.
De resto, o único político de relevo no Brasil que se ofereceu para praticar canibalismo foi Bolsonaro. Damares o acusa agora, ainda que o intento tenha sido outro, de ter prevaricado com pedófilos.
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