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Novo grupo de indígenas isolados está sem proteção há mais de um ano no Amazonas

Funai não publica portaria de restrição de uso nem monta base para monitorar isolados; empresa Eneva atua na região
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Divulgação

Em 12 de agosto de 2023, um equipe liderada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) fazia um levantamento sobre comunidades ribeirinhas e indígenas nas proximidades do rio Uatumã, no município de Itapiranga (AM), quando, segundo relatório da entidade, se deparou com uma cena surpreendente: na mata, a princípio oculto, um indígena despido, com cerca de 30 anos e 1,60 metro de altura, acompanhava à distância os passos da equipe.

Em seguida, conforme o relatório, apareceram mais quatro pessoas: um menino, com cerca de 14 anos, uma menina, 10 anos, uma mulher, 50 anos, e um outro homem, 60 anos. O grupo foi considerado como indígena em isolamento voluntário – possivelmente, segundo indicações coletadas pelos pesquisadores junto a moradores da região, há outras famílias na mesma região ainda não avistadas.

A equipe da CPT tentou conversar com os indígenas em algumas línguas conhecidas na região. Um dos indígenas, contudo, bateu o pé com força no chão, o que foi interpretado como sinal para que todos se afastassem do local. O homem parecia interessado num terçado que a equipe levava. O objeto foi então desinfetado com álcool e deixado para trás, enterrado no chão, como presente. À distância, depois a equipe viu que a ferramenta foi levada pelo indígena.

O encontro casual deixou indigenistas espantados porque o grupo não constava da base da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que lista 114 registros de indígenas isolados no país em três qualificações principais: informação em qualificação, referência em estudo e referência confirmada. O registro no igarapé já foi incorporado à base da Funai.

O ativista da CPT que integrava a equipe tirou uma fotografia de um dos indígenas a cerca de 35 metros de distância. Na imagem, ele aparece com uma faixa na cabeça, o braço direito dobrado e segurando um pedaço de pau.

A grande preocupação agora gira em torno do futuro e da segurança dos isolados. O ponto na floresta em que os indígenas foram avistados é uma área de manejo explorada por uma empresa madeireira, a Mil Madeiras, e está a cerca de 30 km dos limites de blocos de uma empresa de óleo e gás, a Eneva.

Até o momento, contudo, a Funai não publicou portaria de restrição de uso nem montou uma base de monitoramento para prevenir eventuais ataques aos isolados. A presença dos indígenas poderia contrariar interesses econômicos na região.

O ponto na floresta em que os indígenas isolados foram avistados é uma área de manejo explorada pela Eneva
Portarias de restrição de uso já foram usadas no país em diversos outros casos ao longo dos anos a fim de assegurar a integridade física da população isolada, “limitar o ingresso de terceiros e vedar a realização de atividades econômicas ou comerciais no local”.

“O risco é grande. Os isolados estão dentro da área explorada por uma madeireira e de uma área conhecida como Grilagem Paulista e perto de atividades de blocos de extração de gás. É uma área muito extensa do município. A área é muito vulnerável para os isolados e por isso cuidamos de informar ao Estado sobre a situação”, disse, sob reserva, um ativista da CPT à Agência Pública.

“A CPT, o Ministério Público Federal, o Cimi [Conselho Indigenista Missionário], temos tentado de alguma forma fazer com que a Funai se manifeste de uma maneira que venha a promover a proteção dos isolados ou tome outra medida de proteção, mas ainda não temos essas medidas. Há evidências fortíssimas de os isolados estarem ali”, disse o ativista.

Em resposta à Pública, a Eneva colocou em dúvida a presença de isolados na região: “Não há comprovação de indígenas isolados em área próxima a atividades da Eneva”. A empresa pertence ao BTG Pactual (25,3% das ações), à Partners Alpha (22,5%) e a diversos outros acionistas.

A empresa chamou a “hipótese” da presença dos isolados de “absolutamente remota, por se tratar de área altamente antropizada [modificada por ação humana], com atividades como a extração sustentável de madeira, fazendas e sítios com agropecuária, diversas concentrações de residências ao longo da rodovia AM-262 e das margens dos rios da região, incluindo vastas áreas desmatadas para extrativismo por estas populações, e presença de subestações de energia elétrica e cidades de porte razoável nas proximidades”.

Além da Eneva, a Procuradoria-Geral do governo do estado de Roraima também colocou em dúvida, em março, a presença de isolados na área, ao dizer que “a única prova trazida aos autos” é “um relatório produzido unilateralmente pela Comissão Pastoral da Terra (CPT)”. O procurador Marcelo de Sá Mendes fez a afirmação em ofício dirigido ao juiz federal da 7ª Vara Ambiental e Agrária do Amazonas, onde tramita uma ação civil pública.

A ação, que é acompanhada pelo Ministério Público Federal em Manaus, foi ajuizada em maio de 2023 pela Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural (Aspac) e por representante do povo indígena Mura. Ela questiona a ausência de estudos sobre os impactos das atividades da Eneva na região e pede, entre outras medidas, que o órgão ambiental do governo do Amazonas, o IPAAM, seja declarado incompetente para licenciar o empreendimento.

No final de março de 2024, a Funai resolveu então investigar, por meio de uma expedição que durou até o início de abril, o relato do avistamento feito pela equipe da CPT. O trabalho da fundação chegou a uma conclusão bastante diferente das dúvidas levantadas pela Eneva e pelo governo de Roraima.

Em mensagem à Pública, a Funai informou que “a ação [expedição] levantou indicativos da provável presença do povo indígena isolado na localidade, inferindo pela necessidade de novas expedições de localização para qualificação desta existência, de modo a constituir um acervo informacional”.

O órgão indigenista, contudo, não indicou que irá imediatamente publicar uma portaria de restrição de uso ou montar uma base de proteção etnoambiental na região. Citou que ainda fará mais estudos. “Informa-se que a Fundação dará prosseguimento às atividades na região, de modo a aferir pela necessidade de estabelecimento de restrição de acesso a seguir qualificando a presença de indígenas isolados no baixo rio Uatumã”, disse o órgão na nota.

Em ofício enviado ao Ministério Público Federal, embora admita não ter conseguido visualizar os indígenas nem ter confirmado a presença “de maneira inequívoca”, a Funai antecipou que “a possibilidade de confirmação é alta”. Trechos da manifestação da Funai foram divulgados no início deste mês pela revista eletrônica Cenarium.

O novo registro, que mais uma vez demonstra a imensa e surpreendente riqueza socioambiental da Amazônia, foi comunicado pela CPT à Funai extraoficialmente ainda em 2023 e oficializado em janeiro deste ano, com a apresentação da fotografia do indígena. A Funai reconheceu à Pública que “o relato sobre presença de grupo em isolamento em Itapiranga (AM) é inédito, não havendo quaisquer registros históricos ou documentais consolidados que indiquem a presença de um povo isolado na região até então”.

Na mensagem à Pública, a Eneva questionou a expedição realizada pela Funai neste ano por ter incluído “representantes de organizações não-governamentais como a 350.org, que tem como objetivo declarado “[lutar] por um mundo sem combustíveis fósseis (conforme se verifica, por exemplo, em https://350.org/pt/)” – o que indica evidente conflito de interesses. Por outro lado, não houve qualquer convite para que a companhia ou entidades isentas indicassem representantes para acompanhar os trabalhos”.

Procurados pela Pública, os representantes da 350.org no Brasil refutaram a fala da Eneva. “Reiteramos que esses avistamentos de povos indígenas isolados nessa região de São Sebastião de Uatumã e Itapiranga são relatados não somente por agentes da CPT, mas também por inúmeros comunitários e povos indígenas da região, confirmando assim que se trata de grupamentos isolados em extrema vulnerabilidade frente ao avanço sistemático da exploração de gás fóssil pela Eneva e recursos madeireiros pela Mil Madeiras, colocando em risco a vida desses povos.”

A 350.org disse ainda que “atua na diminuição escalonada da exploração dos combustíveis fósseis – petróleo, gás e carvão – como forma de combater o avanço das mudanças climáticas que têm causado eventos extremos como a maior seca que tivemos no último século no Amazonas”.

“Desde o início da exploração irregular de gás fóssil na região de Silves e Itacoatiara, no Campo do Azulão, em 2019, a 350.org/Brasil tem atuado no apoio às comunidades tradicionais e povos indígenas direta e indiretamente impactados pelo megaprojeto fóssil de responsabilidade da empresa Eneva S.A., com impactos socioambientais severos na região e comunidades do entorno.”

A Eneva afirmou ainda, na nota à Pública, que “já procurou a Funai e se dispôs a apoiar todos os esforços que de forma definitiva comprovem ou afastem as alegações das organizações não-governamentais favoráveis à imediata interrupção de todas as fontes de energia fóssil – o que, no caso do complexo de Azulão, deixaria 70% de Roraima sem abastecimento de energia elétrica”.

“A companhia ainda reitera que, segundo as bases públicas da própria Funai, não há territórios indígenas homologados ou em estudo a menos de 25 km de distância do empreendimento. Isso significa que não se aplica a realização de componente indígena, uma vez que, nos termos da Portaria Interministerial 60/2015, esses estudos só devem ser realizados caso haja território indígena situado a até 10 km de distância do empreendimento, no caso de projetos como o do Complexo do Azulão. A Eneva segue cumprindo a regulamentação vigente, mantendo o amplo diálogo com as instituições setoriais e as comunidades onde está presente”, disse a Eneva.

Edição: Thiago Domenici

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