O ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol negociou em sigilo com autoridades norte-americanas um acordo para dividir o dinheiro que seria cobrado da Petrobras em multas e penalidades por causa da corrupção.
Num grupo de troca de mensagens pelo telefone, procuradores suíços e brasileiros mantinham uma comunicação intensa sobre cada etapa do processo da Operação Lava Jato. Foi neste grupo que Deltan detalhou aos suíços suas conversas com os norte-americanos, que vocês lerão a seguir. Esta é uma publicação em parceria com o UOL.
As conversas aconteceram por mais de três anos pelo aplicativo Telegram e não eram registradas oficialmente. A negociação sobre o acordo que penalizaria a Petrobras com multas pagas nos Estados Unidos não envolveu a Controladoria Geral da União, o órgão competente, por lei, para o caso.
Os chats fazem parte dos arquivos apreendidos pela Polícia Federal durante a operação Spoofing, que investigou o hackeamento de procuradores e também do ex-juiz Sergio Moro. Parte dessas conversas foram entregues ao Intercept Brasil e publicadas na série Vaza Jato em 2019.
“My Swiss friends”
No dia 29 de janeiro de 2016, Dallagnol escreveu aos suíços para contar o resultado dos primeiros contatos entre ele e as autoridades norte-americanas.
Deltan – 12:25:52: Meus amigos suíços, acabamos de ter uma reunião introdutória de dois dias com a SEC (Comissão de Valores Mobiliários) dos EUA. Tudo é confidencial, mas eu disse expressamente a eles que estamos muito próximos da Suíça e eles nos autorizaram a compartilhar as discussões da reunião com vocês.
O brasileiro, então, faz um resumo do que foi tratado:
“Proteção às testemunhas de cooperação: eles protegerão nossos cooperadores contra penalidades civis ou restituições; Penalidades relativas à Petrobras. O pano de fundo: O DOJ e a SEC aplicarão uma penalidade enorme à Petrobras, e a Petrobras cooperou totalmente com eles. Eles não precisariam de nossa cooperação, mas isso pode facilitar as coisas e, se cooperarmos, entendemos que não causaremos nenhum dano e poderemos trazer algum benefício para a sociedade brasileira, que foi a parte mais prejudicada (e não os investidores dos EUA). Como estávamos preocupados com uma penalidade enorme para a Petrobras, muito maior do que tudo o que recuperamos no Brasil, e preocupados com o fato de que isso poderia prejudicar a imagem de nossa investigação e a saúde financeira da Petrobras, pensamos em uma solução possível, mesmo que não seja simples. Eles disseram que se a Petrobras pagar algo ao governo brasileiro em um acordo, eles creditariam isso para diminuir sua penalidade, e que o valor poderia ser algo como 50% do valor do dinheiro pago nos EUA.”
A Petrobras fechou um acordo com os Estados Unidos mais de dois anos depois, aceitando pagar uma multa de 853,2 milhões de dólares para não ser processada. O acordo garantiu o envio de 80% do valor ao Brasil – contudo, não exatamente em benefício “para a sociedade brasileira”, como dissera Deltan.
Na verdade, metade do montante bilionário seria destinado a um fundo com CNPJ privado que a própria Lava Jato tentou criar. O ministro Alexandre de Moraes suspendeu a criação do fundo a pedido da PGR. O dinheiro foi destinado à Amazônia e, agora, o CNJ investiga o caso.
Deltan Dallagnol continuaria em sua mensagem aos suíços:
“Outras empresas internacionais: elas concordam em buscar um acordo conjunto. Mencionei que estamos caminhando junto com vocês e eles disseram que é possível coordenar um acordo conjunto com o Brasil e a Suíça quando ambos os países tiverem casos em relação à empresa… Ressaltei a importância das provas suíças em relação a muitas empresas. Se isso der certo, nós (suíços e brasileiros) poderemos tirar proveito dos poderes dos EUA para pressionar as empresas a cooperar e fazer acordos. Tudo isso foi discutido apenas com a SEC. Ainda temos que discutir com o DOJ. Se quiser, posso colocá-lo em contato direto com as autoridades da SEC e do DOJ com quem conversamos. Eles disseram que estão disponíveis.”
DOJ é o Departamento de Estado dos Estados Unidos. SEC é a Comissão de Valores Mobiliários daquele país.
Stefan Lenz, o procurador suíço que, naquela ocasião, liderava o processo em Berna, comemorou.
Stefan – 12:41:32: “Muito obrigado por essa informação, que é MUITO importante para nós, Deltan!”
Lenz ainda explicaria que o então procurador geral da Suíça, Michael Lauber, também havia tido uma conversa com os americanos.
“Ambos querem iniciar conversas sobre uma estratégia comum e coordenação no caso da PB (Petrobras)”, disse.
Os agentes norte-americanos
Naquele mesmo dia, um procurador apenas identificado como Douglas enviou aos suíços uma longa de lista de contatos entre os brasileiros e as autoridades dos EUA.
Douglas Prpr – 17:18:51: Luc and Stefan, as asked by Deltan, follows the list of MPF contacts with the DOJ and the SEC: DOJ: Chris Cestaro (DOJ Fraud Section): Derek Ettinger (DOJ Fraud Section): Lorinda Laryea (DOJ Fraud Section): Patrick Stokes (DOJ Fraud Section): Grace Hill (DOJ EDVA): Jennifer Wallis (DOJ Asset Forfeiture and Money Laundering Section): Mary Butler (DOJ Asset Forfeiture and Money Laundering Section): Woo S. Lee (DOJ Asset Forfeiture and Money Laundering Section): SEC: Carlos Costa Rodrigues: Deborah Crawford: Jonathan Scott: Kara Brockmeyer: Lance Jasper: Samantha S. Martin: Spencer E. Bendell
Deltan Dallagnol completaria com informações sobre alguns deles.
Deltan – 17:28:45: In DOJ, the chief of FCPA section is Patrick. In SEC, it is Kara, but an independent office, which is not part of the FCPA unit, is in charge of the Petrobras part of the investigation, led in this part by Spencer.
As conversas secretas entre a Lava Jato e procuradores estrangeiros, que agora vêm à tona, são parte fundamental de um quebra-cabeça. Em reportagens publicadas pelo The Intercept Brasil em parceria com a Agência Pública, conversas e documentos já haviam exposto a proximidade, as reuniões e as trocas ilegais de informação entre brasileiros e norte-americanos, além dos nomes dos agentes. Deltan Dallagnol havia escondido nomes de pelo menos 17 agentes dos EUA que estiveram em Curitiba em 2015 sem conhecimento do Ministério da Justiça, o que é ilegal.
Entre eles, também havia agentes do FBI. Os encontros e negociações ocorreram sem pedido de assistência formal e foram comprovados por documentos oficiais do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, obtidos pelo Intercept para além dos diálogos da Vaza Jato.
“A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta.”
Durante as conversas e visitas, os procuradores da Lava Jato sugeriram aos americanos maneiras de driblar um entendimento do STF que permitisse que os EUA ouvissem delatores da Petrobras no Brasil. A troca de informações sem o conhecimento do Ministério da Justiça foi intensa. Com base nessas informações, mais tarde, agentes americanos ouviram, no Brasil, Nestor Cerveró e Alberto Youssef, além de outros – depoimentos esses usados para processar a Petrobras nos Estados Unidos.
Deltan Dallagnol sabia que estava agindo à margem da lei. Em um diálogo de 11 de fevereiro de 2016, o procurador Vladimir Aras – então diretor da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da Procuradoria-Geral da República (PGR) – alertou o ex-líder da Lava Jato sobre seus procedimentos ao permitir a operação dos agentes americanos no Brasil.
“Obrigado, Vlad, mas entendemos com a PF que neste caso não é conveniente passar algo pelo executivo”, respondeu Deltan, às 16:00:39, tentando explicar o motivo de ter deixado o Ministério da Justiça de fora das tratativas. Aras rebateu dois minutos depois:
“A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta. O tratado tem força de lei federal ordinária e atribui ao MJ a intermediação. Estamos negociando com o Senado um caminho específico para os casos do MPF. Por ora, precisamos observar as regras vigentes.”
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