Na última quarta-feira, dia 4 de outubro, uma juíza da Vara de Família da Comarca de Fortaleza assinou uma decisão que parecia dar novos rumos a um controverso caso de disputa de guarda, envolvendo uma advogada e um coronel aposentado da Polícia Militar, pelo único filho do ex-casal, que tem 6 anos de idade. A magistrada determinou que o menino passasse a morar com a mãe, encerrando mais de três meses nos quais o garoto ficou afastado dela, incomunicável, vivendo sob a guarda unilateral do pai.
A disputa envolve uma hipótese gravíssima: ele é réu sob suspeita de abusar sexualmente do menino (e já foi acusado pelo mesmo crime contra os dois filhos mais velhos, de outro relacionamento). Mesmo assim, uma série de decisões judiciais têm mantido o caçula sob a tutela paterna.
A mais recente deliberação em favor dele veio na segunda-feira, 9 de outubro, pelas mãos de um desembargador, do Tribunal de Justiça do Ceará, e derrubou o despacho da juíza, que havia sido publicado em benefício da mãe, menos de uma semana antes. Fazia dias que a mulher tentava acertar com o ex-companheiro a devolução, prevista em juízo. Ela viajou do Rio Grande do Norte, onde mora, para Fortaleza, onde o pai vive com a criança, mas voltará sozinha para casa. Ela pode recorrer.
Para além da gravidade das suspeitas, o que tem tornado essa disputa um caso de repercussão nos bastidores do Judiciário é seu andamento – que, para a mãe, decorre da influência do ex-coronel. O militar tem um irmão que é juiz da Vara de Família do Ceará. Além disso, uma prima atua como desembargadora no estado e um primo é juiz cível. Um tio, já morto, era um prestigiado desembargador.
Três juízes e dois promotores da Vara de Família do Ceará se declararam impedidos de atuar no processo. “O caso passou de juiz para juiz, foi sendo transferido para quatro varas diferentes, sem uma solução que levasse em conta a proteção do menor”, afirma Ana Paula Brito, a defensora do lado materno.
O ex-coronel e a advogada nunca se casaram no papel, mas viviam um relacionamento conturbado, em união estável. Ela diz que ele era um homem violento, apresentava “um comportamento sexual doentio”, a agredia fisicamente e a ameaçou com arma de fogo. Houve um inquérito por violência doméstica, que acabou arquivado.
Ao romperem o relacionamento, em dezembro de 2018, eles passaram a ter a guarda compartilhada do filho, que passava sete dias com cada um. Ela relata que o menino voltava da casa do pai com intensas assaduras e marcas no corpo que poderiam ser sinais de violência, além de se desesperar antes de ir para a casa dele, com choros compulsivos. “Ele dizia: ‘Eu quero matar o papai.’” Os relatos que se seguem são perturbadores.
“Meu mundo desabou quando levei meu filho ao consultório odontológico”, conta a mãe. “A dentista disse que ele tinha marcas roxas – chamadas petéquias – no céu da boca, e que isso indicava abuso sexual, ou seja, sexo oral forçado.” Petéquias são pequenas manchas avermelhadas e, quando encontradas no palato mole, podem ter diferentes causas – uma delas, bastante comum, é a prática de felação.
A mulher recorda que deixou o consultório e, no mesmo dia, se deslocou até uma delegacia de Fortaleza com as fotos das marcas na boca do filho, mas foi desmotivada pelo delegado a denunciar o pai, por se tratar de uma acusação grave. Foi feito exame de corpo de delito. O documento confirma a existência das petéquias.
A criança foi devolvida ao pai, como determinado pela guarda alternada. Uma semana depois, ao voltar para o convívio da mãe, o menino demonstrou comportamento “promíscuo”, tentando pegar nas partes íntimas de outros adultos, segundo ela. Em uma gravação, a mãe pede para o filho explicar por que tem falado muito sobre a palavra “cu”. “Meu pai não deixa”, ele responde. “Ele me tapeia, eu fico de castigo.” Ela diz que ele está protegido ali e que pode contar sem medo. O menino diz: “Ele enfia só no meu cu.” A mãe pergunta: “O que ele enfia?” E o menino responde: “O dedo.”
A mãe menciona que, dessa vez, buscou a Delegacia da Criança e do Adolescente de Fortaleza, em posse dos áudios, e que o delegado a incentivou informalmente a não entregar o menino ao pai, como era previsto, e a se mudar de cidade, até que a Justiça determinasse medida protetiva para a criança contra o pai. Foi o que fez: mudou-se com o filho para Parnamirim, no interior do Rio Grande do Norte. O descumprimento das regras da alternância de guarda é um dos pontos citados pelo pai como argumento na disputa.
No novo estado, a mãe pediu a abertura de um novo processo na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de Parnamirim e obteve ali, em setembro de 2021, uma decisão favorável à guarda unilateral temporária. Ela procurou uma psicóloga, que redigiu um laudo a partir de sessões com conversas e atividades lúdicas. No primeiro de cinco encontros com a criança, relatou que ela estava “desorganizada emocionalmente e não conseguia explicar como era sua rotina”.
“[O garoto] ao ser questionado sobre o boneco que representa o pai, fala: ‘Ele tirou minha roupa e lambeu minhas partes íntimas.’ Soltou o boneco e chorou. Após isso, acalmei o mesmo e finalizamos o encontro.”
Em outro vídeo que, segundo a mãe, foi gravado por um familiar, a criança pega um boneco para mostrar o que o pai fazia com ele na hora do banho, e simula uma lambida em outro boneco. A terapeuta pergunta: “O que ele está fazendo?” E o menino responde: “Lambendo o bumbum.” A mãe gravou outros vídeos que mostram o filho chorando e pedindo para não ir para a casa do ex-coronel.
Em outro laudo, encomendado pela Justiça potiguar, as assistentes sociais anotaram:
“Demonstrou estar apreensivo, comportamento o qual foi compreendido durante a conversa estabelecida com ele de maneira natural, espontânea e lúdica, em que [o menino] declarou ter sentido medo de que a equipe levasse o pai ao seu encontro. Questionado sobre [ele], o infante disse não querer contato com o pai pois ele era “muito mal.”
O garoto ficou com a mãe até julho deste ano, quando o pai conseguiu na Justiça do Ceará uma medida cautelar para busca e apreensão do filho, alegando subtração do menor e desobediência da mulher à guarda compartilhada. Quando os dois passavam férias na Paraíba, na casa de veraneio de um familiar, representantes do conselho tutelar e policiais apareceram com a ordem judicial e o levaram.
A mãe acabou absolvida da acusação de desobediência pela Justiça criminal do Ceará, e a acusação de subtração de menor foi encaminhada a um juizado especial que não recebeu o caso por falta de provas.
Em 27 de agosto de 2023, o militar foi denunciado pelo Ministério Público do Ceará sob acusação de violentar sexualmente o menino. No dia 31 do mesmo mês, uma juíza da 12ª Vara Criminal de Fortaleza acolheu a denúncia. Quando isso aconteceu, fazia dois meses que a criança estava sob a tutela exclusiva do pai, sem qualquer contato com a mãe. Um mês e meio depois de ele ter se tornado réu, permanece tudo igual.
A decisão da juíza, da semana passada, de devolver a criança à mãe previa que o pai pudesse ficar com o filho aos sábados, desde que na presença de duas outras pessoas, cada uma delas indicada por uma das partes. Ao derrubar a deliberação, o desembargador argumenta que a mãe pode novamente fugir com a criança.
Na denúncia do Ministério Público por acusação de estupro de vulnerável, a promotora acrescentou outra informação: que existe na polícia “investigação de suposto abuso sexual do denunciado contra seus dois outros filhos, frutos de outros relacionamentos”.
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á duas semanas, em entrevista à piauí, a mãe disse: “Eu não sei se meu filho está vivo. A Vara de Família de Fortaleza ignora todos os meus pedidos de visita e informações, sem me dizer o que há contra mim. Eu tenho certeza que meu filho está sendo violentado todos os dias.”
“Mesmo sem a guarda da criança, a mãe tem direito à visita, mas a Vara de Família de Fortaleza silencia sobre os pedidos”, disse sua advogada na ocasião. “Ela buscou, desde o momento em que chegou na cidade, toda a proteção dentro do sistema judiciário do Rio Grande do Norte, o que não conseguia no Ceará”, argumentou a defensora.
O artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A lei 13.431, de 2017, que complementou o estatuto, trata da prioridade das apurações e processos que envolvam situações de violência contra crianças e adolescentes.
Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos da infância e juventude e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, explica que, segundo a legislação, uma criança deve sempre ter a escuta protegida por profissionais especializados e ser afastada de potenciais riscos. “A lei trata também da realização de depoimento especial da criança vítima nas varas especiais de violência contra crianças e adolescentes e prevê medidas de proteção para vítimas, que devem ficar afastadas de situações de risco e dos possíveis agressores.”
Procurado pela piauí, o pai não concedeu entrevista. Miguel Hissa, seu advogado na Vara de Família de Fortaleza, afirmou à reportagem, duas semanas atrás, que “o caso está sendo discutido em juízo” e disse acreditar que, ao final, o Judiciário dará a guarda definitiva da criança para seu cliente. “Temos convicção.”
Por telefone, ele disse que o menino estava bem, sem mais detalhes. Em nota, afirmou: “É lamentável que a mãe da criança persista em sua campanha caluniosa contra o pai usando a mídia e as redes sociais, o que é uma verdadeira violência contra a criança”. Disse ainda, nesse telefonema em setembro, que “o pai da criança sempre respeitou as decisões judiciais”, enquanto a mãe é “investigada por maus tratos para com o filho”. Ele alegou no processo que a mãe não levava o filho para a escola e que não o deixava assistir às aulas remotas, o que ela nega. Ela também diz que um machucado no joelho, citado por ele, foi decorrente de uma queda no colégio.
Procurado, o Tribunal de Justiça do Ceará afirmou por nota: “Nos nomes dos envolvidos existem diversas ações judiciais, com diferentes assuntos, movidas por ambas as partes e também por órgão ministerial. Os referidos processos tramitam em segredo de justiça, por esta razão, não podem ser repassadas informações.”
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veta a divulgação de nomes dos genitores envolvidos em casos de suspeita de violência sexual ou outras infrações contra a criança, para que sua identidade não seja conhecida de forma indireta.
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