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Grileiros na Amazônia usam inteligência territorial para usurpar terras públicas

Envelhecer documentos com uso de grilos ficou no passado. Emprego de métodos engenhosos para fraudar titulação e mercado lucrativo estimulam a prática
Foto: Jaime Souza

Em 2022, cerca de 600 cadastros rurais foram registrados no Amazonas sobre grandes áreas públicas ainda não destinadas. Estado com as maiores porções ainda não regularizadas do ponto de vista fundiário, o Amazonas apresenta terreno fértil para a tentativa de privatização de terras públicas, a chamada grilagem.

Muitos desses cadastros têm seus limites de forma exatamente adjacente aos limites de áreas protegidas no estado, de forma a não haver sobreposições que futuramente levem a problemas na validação do registro.

Os dados fazem parte de um levantamento ainda inédito realizado pelo Observatório do Código Florestal, ao qual ((o))eco teve acesso. De acordo com a rede – que congrega cerca de 40 instituições empenhadas no monitoramento da implementação da lei florestal no país – a forma como os cadastros foram registrados implicou no uso de técnicas elaboradas.

“Esses 600 imóveis são grandes áreas, enormes, cujos cadastros foram feitos com uso de inteligência, porque a pessoa cruzou unidade de conservação, cruzou Terra Indígena e fez [o registro da área] exatamente onde tinha um vazio, desenhando nitidamente”, explicou Roberta Del Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal. “Quero dizer, claramente teve uma manipulação com objetivo de regularização fundiária, de receber alguma vantagem com isso”, complementa.

O uso de inteligência territorial para fins de regularização futura é apenas uma das várias técnicas hoje utilizadas por grileiros em busca da titulação. A prática de envelhecer documento falso em uma gaveta com grilos, para que o papel ficasse amarelado e com buracos, ficou no passado.

Técnica da autodelação

A legislação brasileira considera como aceitáveis para fins de regularização fundiária somente documentos que expressem claramente a cadeia dominial da terra, como títulos de terra. Mesmo assim, desde que foi criado, em 2012, o Cadastro Ambiental Rural tem sido usado como “prova” do domínio, junto com outros documentos ainda mais frágeis, como multas e embargos.

Recentemente, no entanto, grileiros de terra na Amazônia têm dado um jeito de burlar ainda mais o sistema. A lei ambiental brasileira considera que, se um órgão fiscalizatório já aplicou multa ou embargo em determinada propriedade, outro órgão não pode aplicar uma segunda sanção.

Para exemplificar: se a secretaria estadual de meio ambiente aplicou uma sanção a determinada propriedade, o Ibama, federal, não pode aplicar novamente para o mesmo crime.

Acontece que a sanção estadual é mais fraca que a federal e possui menos transparência. Segundo o diretor do Departamento de Políticas de Controle do Desmatamento do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Raoni Rajão, grileiros têm se beneficiado justamente dessa situação.

“Tem gente desmatando na Amazônia e buscando o órgão ambiental estadual para multar e embargar eles primeiro. Ativamente ele se auto denuncia. Ele liga e fala ‘estou desmatando, pode vir aqui’”, disse o diretor, em evento durante os Diálogos Amazônicos, realizado em Belém em agosto passado.

“Isso mostra de maneira muito clara que o benefício de ter um auto de infração no próprio nome para possíveis pedidos futuros de regularização da área é maior do que o dano ambiental ou a punição. Isso é um absurdo. Precisamos entender como modificar esses processos […] Alguns estados inclusive se tornaram extremamente efetivos em embargar remotamente. Curioso isso”, complementa Rajão.

Em entrevista a ((o))eco, Rajão explicou que o departamento que ele hoje comanda tem recebido informações de autodenuncia de vários estados da Amazônia, mas principalmente do Pará e Mato Grosso.

“Estamos ainda trabalhando na sistematização dessas informações, mas sabemos que [a autodenúncia para fins de titulação futura] têm sido frequentes o suficiente para gerar uma preocupação”, disse.

Para tentar evitar situações como a descrita por Rajão, em julho de 2023, o Conselho Monetário Nacional (CNM) trouxe mudanças no Manual de Crédito Rural. A partir de janeiro de 2024, bancos não poderão fazer empréstimos para empreendimentos em imóveis rurais com CAR suspenso, em que exista embargo de órgão ambiental estadual ou federal, em todos os biomas brasileiros. Antes da mudança, o embargo estadual não impedia o crédito.

Venda sem papel

Comprar terras na Amazônia é tarefa fácil. Uma busca simples na internet e centenas de resultados aparecem. Nas redes sociais não é diferente. Grupos de compra e vendas de terras no Facebook, por exemplo, se utilizam do espaço sem controle para fazerem suas ofertas.

E não precisa nem ter a escritura da terra para fazer a oferta. Na infinidade de anúncios na rede, é comum encontrar aqueles que usam apenas o contrato de compra e venda como documento comprobatório da titularidade ou apenas o Cadastro Ambiental Rural e georreferenciamento para tal fim.

“400 hectares com 160 hectares de pasto. Documentos – CAR, Geo [georeferenciamento] e foi dada entrada no título. Localizada na BR 364, sentido Jaci-Paraná/Rondônia. Preço – R$ 4.800.000,00 (Quatro milhões e oitocentos mil reais)”, diz um dos anúncios.

“Chácara de 7 alqueires formados. Águas boas, não é cercado. Tem muita madeira. 37 km de Theobroma/RO. Documento – contrato de compra e venda. Valor – R$ 29 mil por alqueire. Total – 200 mil”, anuncia outro.

Segundo Brenda Brito, pesquisadora sênior do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia, nem mesmo quando um ocupante de terras tem o processo de regularização iniciado no órgão público responsável significa que ele já tenha o título da terra, já que o processo pode não ser validado.

“Dizer que tem o CAR e o georreferenciamento não significa nada. Muitas vezes essas pessoas que estão vendendo sabem que não significa nada, mas vendem levantando a expectativa de que em poucos anos aquilo vai ser reconhecido. Antigamente se usava um protocolo do INCRA, hoje em dia se usa o CAR”, explica a pesquisadora.

Compra barato, vende caro

O crescente desenvolvimento nas técnicas usadas por grileiros tem sua razão de ser. Os valores cobrados pelos governos estadual e federal nos processos de regularização fundiária – quando um ocupante adquire a área desses entes públicos – são extremamente baixos. Já vender essas terras no mercado é lucro certo.

Segundo estudo do Imazon, em média, os governos estaduais cobram 15% do valor de mercado e o governo federal cobra 26%, considerando os valores usados como base para o cálculo do preço final.

Dentre os estados, o Tocantins ganha disparado entre os que cobram os menores valores. Nesta unidade da federação, a média cobrada por hectare é de apenas R$4 reais. Isso mesmo: quatro reais. Para imóveis pequenos, até quatro módulos fiscais, o valor cai para R$1 o hectare.

Considerando a média dos valores cobrados pelos estados, o hectare de terra – 10 mil m² ou o tamanho de um campo de futebol oficial – sai a R$ 247. Mas o negócio pode ser ainda melhor para o ocupante.

 

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