Os artistas que criticaram o presidente Jair Bolsonaro no Lollapalooza não agrediram a Lei 9.504 — Lei Eleitoral — nem mesmo Pabllo Vittar, que brandiu uma toalha, não uma bandeira, com o rosto de Lula, que ganhou de um fã. Assim, é despropositada a liminar concedida no sábado pelo ministro Raul Araújo, do TSE. Tanto pior porque o magistrado fez uma admoestação pelo que considerou transgressões já cometidas e impôs uma modalidade de censura prévia aos artistas para tentar coibir futuras — e, pois, pressupostas —agressões à lei.
Os artistas não cometeram crime eleitoral, mas Bolsonaro sim. O evento promovido pelo PL no domingo e o discurso do presidente são campanha antecipada na modalidade “explícita”. E vamos agora ao aspecto, talvez, mais polêmico do meu texto, já que é um juízo de valor, assentado numa leitura da política: acho que os artistas que puxaram coro contra Bolsonaro ou que estimularam a plateia a fazê-lo podem estar reincidindo num erro. Vamos por partes.
A LIMINAR
Fazendo uma síntese das alegações do PL, que apelou à Justiça eleitoral, o ministro narra os eventos principais que o levaram a tomar a decisão, a saber:
– durante seu show a artista Pabllo Vittar ergueu uma bandeira com a foto do pré-candidato ao cargo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, o que configura propaganda eleitoral antecipada;
– a cantora internacional Marina incide em propaganda eleitoral antecipada, na modalidade negativa, quando incita os presentes a proferirem palavras de baixo calão contra o pré-candidato filiado à legenda representante, notadamente quando sua fala se inicia com ‘eu estou cansada dessa energia, ****-se Bolsonaro”.
– a manifestação política em mais de um show, uma em absoluto desabono ao pré-candidato Jair Bolsonaro e outra em escancarada propaganda antecipada em favor de ‘Lula’, configuram propaganda eleitoral irregular — negativa e antecipada — além de promoverem verdadeiro showmício, sendo indiferente se o evento foi custeado pelo candidato ou se o mesmo esteve presente no ato.
Araújo atendeu só parcialmente ao pedido do PL: não aplicou multa pelos eventos já ocorridos, mas concordou em “prestigiar a proibição legal, vedando a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político”, sob pena de multa de R$ 50 mil por ato de descumprimento.
A LEI
O ministro justifica a sua liminar de maneira muito resumida, limitando-se a citar o caput do Artigo 36 da Lei 9.504, a saber:
“Art. 36. A propaganda eleitoral somente é permitida após o dia 15 de agosto do ano da eleição.”
Sem dúvida, isso está lá escrito. Esse artigo contém cinco parágrafos, como ele sabe, E TODOS ELES DEIXAM CLARO QUE SE DESTINAM A AGENTES POLÍTICOS, o que não é o caso dos artistas.
Ao Artigo 36, sucede-se o 36-A, definindo O QUE NÃO CONSTITUI CAMPANHA ELEITORAL ANTECIPADA. E então se lê:
“Não configuram propaganda eleitoral antecipada, desde que não envolvam pedido explícito de voto, a menção à pretensa candidatura, a exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos e os seguintes atos, que poderão ter cobertura dos meios de comunicação social, inclusive via Internet”.
Seguem-se sete incisos e três parágrafos. E, mais uma vez, fica evidente que a lei se refere a agentes políticos.
Sim, é verdade, o Parágrafo 4º do Artigo 37 define:
“§ 4º Bens de uso comum, para fins eleitorais, são os assim definidos pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil e também aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada.”
Assim, é claro que poderia ter ocorrido, lá no ambiente do Lollapalooza, campanha eleitoral antecipada. Então vamos ver: alguém poderia impedir — e sob que pretexto o faria? — Pabllo Vittar, Marina, Emicida ou outro artista qualquer de expressarem uma opinião política desfavorável a Bolsonaro ou favorável a Lula? Não há, e o ministro deve saber, nem mesmo os meios para fazê-lo.
Ainda que a direção do evento passasse adiante a orientação, o que aconteceria no caso de descumprimento? Desligar o som? Mandar todo mundo pra casa?
A decisão do ministro é estranha porque dá um triplo salto carpado hermenêutico para concluir o contrário do que ele mesmo expõe como pressuposto. Escreve:
A Constituição Federal reiteradamente assegura a livre manifestação do pensamento, a exemplo do art. 5º, IV e IX, da Constituição Federal. No segundo dispositivo mencionado a Carta da República categoricamente assenta que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Na mesma toada é o art. 220, § 2º, no sentido de que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
O evento musical ‘Lollapalooza’, organizado pelas representadas, não possui caráter político-eleitoral e acontece no Brasil desde 2012, de modo que, neste ano, está sendo realizada mais uma edição.
Tudo indica que ele vai concluir, então, que a acusação não procede. Mas ele faz o contrário e emenda:
“A manifestação exteriorizada pelos artistas durante a participação no evento, tal qual descrita na inicial, e retratada na documentada anexada, caracteriza propaganda político-eleitoral.”
Por quê?
Esperar que shows de rock, pop e afins, que reúnem milhares de jovens, não resultem em palavras de ordem contra políticos, como direi?, reacionários é o mesmo que imaginar que as motociatas promovidas por Bolsonaro acabarão com vivas a Lula e às esquerdas.
Uma pergunta ao ministro Araujo: doravante, em seus shows, os artistas devem se abster de expressar opiniões políticas. Seria uma agressão inaceitável à Constituição.
Com todo o respeito, a liminar é uma aberração e uma agressão à Constituição — como, aliás, lembra o próprio ministro.
EVENTO DO PL
Neste domingo, PL e Bolsonaro promoveram um evento em Brasília que, no papel, marcava apenas um movimento de filiações ao partido. Bolsonaro, no entanto, chamou o troço de lançamento de sua pré-campanha — desrespeitando orientação jurídica da própria legenda. Nesse caso, sim, uma penca de artigos da Lei 9.504 foi para o lixo.
Referindo-se à eleição de outubro, disse o presidente:
“O nosso inimigo não é externo, é interno. Não é luta da esquerda contra a direita, é do bem contra o mal. E nós vamos vencer essa luta, porque estarei sempre na frente de você”.
Eleitoralismo e com viés golpista, como sempre:
“Se é para defender a democracia, a liberdade, eu tomarei a decisão contra quem quer que seja. E a certeza do sucesso é que eu tenho o exército ao meu lado. Este exército é composto de cada um de vocês”
Assim como o urubu vomita quando se sente ameaçado, Bolsonaro confessou que a democracia pode embrulhar o seu estômago:
“Por vezes, me embrulha o estômago ter que jogar dentro das quatro linhas [da Constituição], mas eu joguei e não foi da boca para fora. E aqueles que estão do meu lado, todos, em especial os 23 ministros, eu digo isso, vocês têm a obrigação de, juntamente comigo, fazer com que quem esteja fora das quatro linhas seja obrigado a voltar para dentro.“
Pabllo Vittar fala em seu show o que quiser. A lei já o proíbe, e a qualquer artista, de fazer comício, embora todos possam participar de eventos para arrecadar recursos quando a campanha começar — são aspectos um tanto esquizofrênicos de uma interpretação que o STF deu à lei, mas assim é. Bolsonaro, no entanto, não pode fazer o que lhe dá na telha.
O evento deste domingo era custeado com recursos públicos. É grana do Fundo Partidário — à diferença do Lollapalooza. Aos postulantes a cargos públicos — não é o caso dos artistas — é proibido fazer “pedido explícito de voto”. E Bolsonaro pediu, tratado no evento como “Capitão do Povo”, sob o lema “É com ele que eu vou”.
Será que a cantora Pabllo, que não é candidata a nada e canta para quem pagou ingresso, tem de ficar calada para que Bolsonaro, arregaçando a lei, possa fazer campanha eleitoral antecipada com recursos públicos?
POLÊMICA PARA ENCERRAR
Os artistas não cometeram crime nenhum e duvido que a liminar seja endossada. Bolsonaro, este sim, ignorou o texto legal e deveria ser punido. Peço, não obstante, atenção para um aspecto: cuidado com o fenômeno “Ele não!” Muitos alimentaram a ilusão, em 2018, de que aquele mar de gente poderia, então, ser a voz da maioria do país. Não era.
Convém não cometer duas vezes o mesmo erro.
Shows de música — especialmente rock, pop, funk e outros — podem reunir muitos milhares. Por mais amplas que sejam as plateias, ainda assim, é preciso lembrar que se trata de uma bolha de opinião de pessoas com valores em muitos aspectos coincidentes. A repulsa quase unânime a Bolsonaro em shows do Lollapalooza não se repte em toda parte.
Hoje, apontam as pesquisas, a maioria quer o tal “Mito” fora da Presidência. Mas a eleição está longe. Acreditem: ainda é mais prudente e inteligente atrair pessoas do que viver a ilusão de que a bolha — mesmo que ampla — é o Brasil.
Xingar Bolsonaro pode ser muito bom se você não gosta dele. Mas tentar tirar votos do “Mito” pode, então, ser muito melhor, não?
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