O comando da Amazonas Energia (AmE) resolveu falar. A distribuidora de energia elétrica do Estado mais extenso do Brasil corre contra o tempo para finalizar um conturbado processo de troca de dono e de relação com a Eletrobras. Com uma dívida impagável e o maior índice de furto de energia – o famoso “gato” – do país, Márcio Zimmermann, CEO da AmE, abriu o jogo sobre as dificuldades vividas pelo Grupo Oliveira Energia, que assumiu o controle da distribuidora em 2019.
Zimmermann, que já foi ministro de Minas e Energia no finzinho do governo Lula II, diz que o Grupo Oliveira recebeu a empresa com uma dívida muito maior que o esperado, além de ter que enfrentar uma cultura enraizada de furto de energia, que hoje compromete mais de 40% da receita anual. A sucessão de problemas obrigou o atual comando da Amazonas Energia a realizar um processo para vender a empresa pelo valor simbólico de R$ 1.
Hoje, a única candidata para assumir o negócio é a Âmbar Energia, da J&F Investimentos, a holding da família Batista, dona da JBS. “Estamos em um processo que a gente espera que termine nas próximas semanas”, diz Zimmermann.
Nesta sexta-feira (13), acaba a consulta pública da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sobre a proposta da Âmbar para assumir a empresa, e no dia 12 de outubro vence o prazo de uma controversa medida provisória que prorrogou benefícios regulatórios concedidos à Amazonas Energia para o próximo dono (contaremos isso mais adiante).
A venda da AmE é um processo que remonta há quase um ano, quando o Oliveira Energia comunicou à Aneel que buscaria um novo dono para a distribuidora. O objetivo era encontrar alguém que pudesse equacionar uma dívida de quase R$ 10 bilhões com a Eletrobras – e que não para de crescer – e que aceitasse ficar com uma operação vem acumulando seguidos prejuízos.
O aperto financeiro levou a Amazonas Energia a ter dificuldades de quitar suas obrigações regulatórias, o que é proibido por lei. Além disso, desde setembro de 2022 a Aneel vem relatando problemas na AmE. Recentemente, por exemplo, regiões do Amazonas tiveram apagões, o que gerou manifestações da população contra a empresa.
Diante dos problemas, um grupo de trabalho da Aneel listou em fevereiro três alternativas para salvar a empresa:
- o vencimento antecipado da concessão, com o governo federal assumindo a empresa e reembolsando o Oliveira Energia pelos investimentos feitos;
- que a União interviesse e pagasse para alguma companhia assumir a AmE até encontrar um novo comprador ou
- que a Oliveira Energia achasse um comprador.
Neste momento, o que está valendo a última alternativa. Zimmermann diz que a Amazonas Energia chegou a conversar com mais de 10 interessados. Além da Âmbar, que efetivou uma proposta, BTG Pactual e Green Energy foram outros players que chegaram a avançar nas conversas, mas as duas acabaram saindo do páreo.
O peso do ‘gato’
O Amazonas é o Estado com o maior índice das chamadas perdas não-técnicas, o “gato”. Em volume furtado, o líder é o Rio de Janeiro, que tem a Light – empresa em recuperação judicial com dívidas de R$ 11 bilhões – como o maior exemplo. Mas a Amazonas Energia é líder em relação ao percentual de receita comprometida com os “gatos”: 42%, segundo Zimmermann. Na Light, esse índice é de 17,5%.
Em cifras, a Light teve prejuízo de R$ 874,5 milhões com os “gatos” em 2023, segundo a Aneel; a Amazonas Energia, R$ 646,1 milhões.
“É uma sangria de quase R$ 700 milhões por ano. Imagina o quanto pesa para uma empresa que precisa quitar R$ 1,2 bilhão por ano em parcelas [de financiamentos]”, afirma o CEO. A situação é ainda mais grave porque um dos principais devedores é o governo estadual, segundo Zimmermann, com dívidas que ultrapassam os R$ 600 milhões. Procurado pelo InvestNews, o governo do Amazonas não se manifestou.
As perdas com “gatos” não são uma tendência recente. Em relatório, a Aneel informa que pelo menos desde 2001, quando a Eletrobras assumiu a concessão, a distribuidora enfrenta dificuldades para lidar com os “gatos”.
“A operação da Amazonas Energia foi deficitária durante todo o período da concessão, com geração de caixa insuficiente para arcar com os gastos da atividade”, informa a Aneel, apontando as perdas não-técnicas como principal causa. “A operação foi viabilizada, regra geral, por meio de recorrentes aportes da Eletrobras.”
Zimmermann, CEO da AmE, que conhece esses problemas desde os tempos em que presidiu o conselho da Eletrobras na década passada, diz que os “gatos” de energia se tornaram uma questão cultural no Amazonas.
Hoje, 13,8% do valor da conta de luz do Amazonas é para ajudar a cobrir o prejuízo com os “gatos” – o mais alto índice do país.
Para viabilizar a venda da Amazonas Energia para o Grupo Oliveira, a Aneel desenhou em 2016 um fluxo de reembolsos para a distribuidora até 2025 de forma a amenizar os prejuízos causados pelo furto de energia. Não foi o suficiente.
Dívida impagável
A Aneel considera a situação financeira da Amazonas Energia insustentável. A degradação da dívida, relata Zimmermann, começou já na chegada do Oliveira Energia ao negócio. O Grupo diz que a União descumpriu uma cláusula do leilão, a de garantia que o valor do patrimônio líquido da empresa (“equity”) seria zero no momento da transferência do controle.
Para entender a lógica: a Eletrobras assumiu R$ 8,9 bilhões em dívidas da Amazonas Energia, concentradas em geradoras da própria Eletrobras. Isso deixou a empresa “limpa” para o mercado. Porém, uma divergência de interpretações sobre o processo fez com que o Grupo Oliveira Energia assumisse a empresa com uma dívida de R$ 3,3 bilhões em valores de hoje.
A divergência está na data em que o patrimônio líquido seria zerado. Para o Oliveira Energia, a cláusula deveria valer a partir de abril de 2019, quando o grupo assumiu a AmE. Para a União, o patrimônio líquido zero seria baseado no balanço de empresa de junho de 2017, com as dívidas a partir dali já contando para o novo controlador.
“De repente, você tem uma dívida impagável e ninguém sabia disso. Foi um problema de largada”, afirma Márcio Zimmermann. O caso está sendo tratado na Justiça Federal.
Subsídios
Além da dívida e do alto índice de “gatos”, Zimmermann e a Aneel indicam mais um desequilíbrio na AmE: a sobrecontratação de energia, ou compra de energia além do necessário, decorrente do período em que o Amazonas era parte do sistema isolado de energia.
No passado, sem ter o backup do Sistema Interligado Nacional (SIN) em caso de falha de alguma usina, a Amazonas Energia fechou contratos de compra de energia acima do necessário – uma gordura para eventualidades. O relatório da Aneel diz que a Amazonas Energia contrata 40% a mais do que a sua necessidade.
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O tema é intrincado. Até 2026, o pagamento dessa energia extra será feito pela Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), um fundo do setor elétrico para distribuidoras que possuem contratos com termelétricas e que é constituído por um percentual do valor da conta de luz. A CCC, por sua vez, faz parte de um fundo maior: a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) – atualmente, 13,6% do valor da conta de luz do país é destinado à CDE.
A Amazonas Energia é a que mais recebe repasses do CDE: R$ 3,13 bilhões em subsídios este ano. No ano passado, o valor superou os R$ 6 bilhões.
Com o prazo dos subsídios da CCC acabando, a Aneel chegou a recomendar em fevereiro alguma “medida legislativa” para garantir que essa energia extra comprada pela Amazonas Energia continue a receber subsídios como forma de dar equilíbrio financeiro para a concessão. Caso contrário, diz a Aneel, “os valores de sobrecontratação involuntária serão repassados às tarifas dos consumidores da área de concessão [Amazonas], em um total de R$ 4,49 bilhões.”
Foi daí que surgiu a polêmica Medida Provisória 1.232.
A Medida Provisória
Em 12 de junho, o governo federal publicou a MP 1.232 com “o objetivo de assegurar o reequilíbrio econômico-financeiro” da Amazonas Energia. O pagamento de subsídios foi prorrogado por 15 anos (o total de três ciclos tarifários) para que a Amazonas Energia quite seus fornecedores de energia – e isso só vale com a troca de dono da empresa.
Como o texto pressupõe que a Amazonas Energia terá um novo dono, o beneficiário do rearranjo será quem comprar a AmE. No caso a Âmbar Energia, única interessada.
O interesse da Âmbar pela Amazonas Energia se tornou público em 10 de junho, quando a empresa dos Batista fechou a compra de 12 termelétricas da Eletrobras, 11 no Amazonas e uma no Rio de Janeiro, por R$ 4,7 bilhões, deixando para trás um consórcio formado por Eneva e BTG e outro da catarinense Diamante Energia em conjunto com um fundo de investimento árabe.
A maior parte das usinas vendidas aos Batista é dona da dívida da Amazonas Energia. Sem a troca do controle da AmE, quem fica com os créditos a receber é a Eletrobras. Mas o contrato entre Âmbar e Eletrobras prevê que, se a empresa da J&F se tornar a controladora da AmE, o crédito a receber é cedido para a Âmbar. Na prática, se a Âmbar assumir a Amazonas Energia, passa a ser credora dela mesmo, absorvendo a dívida e “limpando” o balanço da Amazonas Energia.
O acordo entre Âmbar e Eletrobras em data tão próxima à da edição da Medida Provisória levou a questionamentos de que a MP teria sido editada em benefício do grupo empresarial da família Batista, o que é negado pelo Ministério de Minas e Energia e pela Âmbar.
Em nota, a Âmbar diz que a Amazonas Energia “contrata apenas cerca de 30% da energia gerada pelas usinas incluídas na transação” com a Eletrobras. “Todas as alternativas possíveis para solucionar a situação da Amazonas Energia foram desenhadas por um grupo de trabalho [da Aneel], cujo relatório foi publicado em fevereiro de 2024”, acrescentou.
Na proposta para assumir a Amazonas Energia, em análise pela Aneel, a Âmbar estima que serão necessários R$ 15,8 bilhões em subsídios até 2038 para fazer dar conta da reestruturação da Amazonas Energia, que teria a concessão renovada por 50 anos. A Aneel acredita que o valor seria metade disso. A agência reguladora sugere um acompanhamento de resultados para que qualquer eficiência capturada pela Âmbar seja revertida em menos subsídio.
Questionada, a Âmbar diz que sua proposta “busca evitar a repetição de condições que não foram capazes de solucionar o problema”. A empresa lembra ainda que o problema da Amazonas Energia é sistêmico, “acumulando perdas de mais de R$ 30 bilhões em 20 anos”.
A decisão sobre o futuro da Amazonas Energia está nas mãos da Aneel e da eventual aprovação da Medida Provisória 1.232.
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