As investigações da Polícia Federal para averiguar possíveis irregularidades supostas no modo como governo de Jair Bolsonaro lidou com joias presenteadas pelo governo da Arábia Saudita colocaram as Forças Armadas no centro das apurações. Militares e assessores próximos do ex-presidente são suspeitos de atuarem para vender as joias nos EUA. A PF acredita que os recursos advindos com a venda dos itens eram repassados para Bolsonaro em dinheiro vivo, por meio de pessoas próximas do presidente e sem utilizar o sistema bancário formal.
Bolsonaro tem dito que não se apropriou de bens públicos e não mandou nenhum de seus auxiliares vender as joias. Na última quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a quebra do sigilo bancário do ex-presidente e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Ela questionou a decisão. “Pra que quebrar meu sigilo bancário e fiscal? Bastava me pedir! Quem não deve, não teme!”, afirmou a esposa de Bolsonaro nas redes sociais.
A lista de presente recebidos entre 2019 e 2022 tem sido desvendada aos poucos. As peças foram recebidas em viagens internacionais e deveriam ser incorporadas ao acervo presidencial, o que não aconteceu. Elas entraram no Brasil de diferentes formas, incluindo na mochila do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerde.
Até o momento, a PF analisa a trajetória dos seguintes itens: dois relógios, um da marca Rolex (além de joias da mesma marca) e outra da Patek Philipe, duas esculturas douradas e folheadas a outro e um kit da marca Chopard. As peças foram levadas aos EUA na viagem oficial feita por Bolsonaro no dia 30 de dezembro antes de finalizar seu mandato.
“Para uma instituição como as Forças Armadas brasileiras, cujas cúpulas militares criaram a imagem do servidor público sacrificado e dedicado à Pátria, é desolador ver um almirante de esquadra, um primeiro tenente e um primeiro-sargento da Marinha; um general, um tenente-coronel e um tenente do Exército envolvidos em tráfico de muambas. É constrangedor para a FAB ter seus jatos utilizados para levar ilegalmente joias para o exterior. Tudo em esquema primário e tosco”, afirmou Jorge Ferreira, professor titular de História da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Abaixo, a lista de suspeitos das Forças Armadas que aparecem na investigação. Eles negam irregularidades.
Exército
Em depoimento à PF, Cid disse que foi avisado por Bolsonaro no fim do ano passado sobre um presente retido pela Receita Federal. O militar tentou a liberação junto à Receita Federal, no Aeroporto de Guarulhos, mas não conseguiu. Desde então, seu nome ganhou protagonismo nas apurações, ao lado de Frederick Wassef (ex-advogado e amigo de Bolsonaro), o general Mauro César Lourena Cid (pai de Mauro Cid), e o tenente do Exército Osmar Crivelatti, outro ex-ajudante de ordens do ex-presidente.
Segundo a PF, Cid teria vendido alguns dos itens no exterior, em casas de leilão em Nova York, e o dinheiro obtido seria entregue a Bolsonaro. Wassef, inclusive, teria recomprado algumas peças. Em janeiro deste ano, Cid enviou mensagens para Marcelo Câmara, outro assessor da Presidência da República, citando 25 mil dólares que pertenceriam a Bolsonaro.
“Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em ‘cash’ aí. Meu pai estava querendo inclusive ir ai falar com o presidente. (…) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (…). Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor, né?”, diz Cid.
Cid tem dado sinais dúbios sobre uma possível declaração que possa culpar Bolsonaro. Seu advogado, Cezar Bittencourt, que disse que Bolsonaro havia dito a Cid para vender as joias, afirmou neste domingo (20/08) em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo que “pode dizer o que quiser” e que a “versão efetiva” da defesa estará nos autos do processo.
Outro personagem próximo a Cid e que também é do Exército é seu pai, Mauro César Lourena, general de quatro estrelas e colega de Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), nos anos 1970. Ele também ocupou cargo federal em Miami, nos EUA, onde chefiou o escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex). Segundo a PF, o general aparece no reflexo de uma foto de uma caixa que acomodou um dos itens negociados irregularmente, uma palmeira dourada folheada a ouro.
Já segundo-tenente Osmar Crivelatti foi alçado ao posto de ajudante da presidência da República em 2019. Assim que Bolsonaro perdeu a eleição, o militar foi aos EUA preparar a chegada do chefe. Segundo a PF, ele teria recebido, em março deste ano, já no Brasil, o relógio da marca Chopard que havia ido a leilão, sem sucesso, em Nova York.
Já o coronel da reserva Marcelo Costa Câmara, assessor especial do gabinete da Presidência da República e que foi designado por Bolsonaro para cuidar do seu acervo após deixar o cargo, atuou em parceria com Cid para recuperar as joias depois que as investigações começaram.
O segundo-tenente do Exército Cleiton Holzschuk, outro ajudante de ordens e próximo do clã presidencial, tentou liberar as joias no aeroporto de Guarulhos. Também atuou para manter sob a guarda do ex-presidente um conjunto de pedras preciosas entregue a Bolsonaro em outubro do ano passado, durante comício em Teófilo Otoni (MG), segundo a PF.
Marinha e FAB
Integrante do corpo ministerial do início de 2019 até maio de 2022, Bento Albuquerque foi ministro das Minas e Energia. Hoje, é alvo de inquérito da PF por suspeita de omitir informações sobre o transporte das joias sauditas presenteadas em viagem oficial durante a gestão Bolsonaro. Em depoimento à PF em março deste ano, ele disse que as joias foram enviadas “sem direcionamento”.
O posto de almirante é o mais alto a ser atingido dentro da Marinha.
Outros três nomes ligados a Bento Albuquerque atuaram para tentar liberar as joias apreendidas pela Receita Federal no aeroporto de Guarulhos: o sargento Jairo Moreira da Silva, o tenente Marcos André Soeiro e o contra-almirante José Roberto Bueno Junior, que foi chefe de gabinete do ministro.
Jairo Moreira foi a São Paulo tentar reaver as joias em um voo da Força Aérea Brasileira (FAB), assim como Bolsonaro, em sua ida para os EUA após a derrota nas eleições presidenciais e onde levava os presentes não entregues ao governo.
“Após serem apropriados pelo ex-presidente da República, formalmente ou não, os bens foram levados, de forma oculta, para os Estados Unidos da América, na data de 30 de dezembro de 2022, por meio de avião presidencial e encaminhados para lojas especializadas nos estados da Flórida, Nova Iorque e Pensilvânia, para serem avaliados e submetidos à alienação, por meio de leilões e/ou venda direta”, disse relatório da PF.
As Forças Armadas sob análise
A presença de militares de alto escalão nas investigações ainda é tida com alguma surpresa para quem estuda o tema, como explica Piero Leirner, professor titular do departamento de Ciências Sociais Universidade Federal de São Carlos.
“De um lado era de se esperar que alguém nas Forças Armadas ia atuar em ‘ressonância’ com aquilo que é sabidamente uma característica de Bolsonaro e seu entorno. Bolsonaro era um projeto militar, estava no cálculo também a adesão ao ‘bolsonarismo’ – com tudo que este tem direito. De outro lado, o que me surpreende é que a ‘granada’ está estourando justamente embaixo de militares com posições muito boas na carreira, especialmente os do Exército (e os das outras Forças entram no mesmo tipo de ‘arrasto’) e com um perfil de ‘forças especiais’.”
Ele argumenta ainda que é difícil imaginar que o envolvimento de alguns militares nas possíveis negociatas do governo Bolsonaro não tenha sido calculado pela estrutura maior das Forças.
“Para tudo é preciso consentimento da cadeia de comando, e uma estrutura que possibilite coletivamente realizar esse projeto. É errado pensar que isso é a realização da ‘ordem’ do ex-presidente, a ‘ordem’ de um capitão sobre generais°, afirma °Simplesmente toda decisão que concerne às movimentações militares, sua cessão para cargos no governo, promoções, exonerações, são decisões do comandante e passam pelo Alto-Comando. É claro que houve uma rede em que uns foram puxando outros ‘para dentro’ (da política; ou, se quiser, ‘para fora’ da caserna), mas não podemos perder de vista que essas movimentações sempre são controladas”, frisa Leirner.
Jorge Ferreira, da UFF, complementa. “O novo advogado de Mauro Cid alegou que ele apenas cumpria ordens. Ora, sabemos que a hierarquia e a disciplina são os fundamentos da instituição militar”, pondera. °O militar não é obrigado a cumprir ordens absurdas – como torturar ou levar para o exterior, de maneira ilegal, patrimônio público. Ele tem o direito de não cumprir tais ordens”, sublinha.
Sobre possíveis punições, Jorge Ferreira afirma que os militares investigados no caso das joias se enquadram naquilo que o ministro do STF Alexandre de Moraes já definiu como “crime de militar” – a prerrogativa está sendo usada no caso dos atos golpistas de 8 de janeiro. Assim, a Justiça Militar não tem ingerência sobre o caso “Portanto, se eles forem indiciados em processo criminal, serão julgados e condenados ou absolvidos por tribunais comuns”, explica.
Com oficiais sob investigação e imagem duramente atingida, Piero Leirner acredita que as Forças Armadas farão um movimento duplo. “Em termos do que elas provavelmente estão esquadrinhando, eu apostaria num redobramento da anistia, com elas operando uma imagem de recolhimento para fora e ação corporativista para dentro”, analisa Ferreira,
O historiador acredita que o futuro da corporação será de cobranças e reorganização. “A cúpula militar planejou o retorno ao poder com Bolsonaro e se envolveu com ele em seu projeto político de extrema direita. Agora, chegou a hora da cobrança aos militares pela entrada na política e no apoio ao bolsonarismo. Acredito que, atualmente, exista nas Forças Armadas mais do que inquietação e desconforto, mas irritação. Mas há de se perguntar: como a cúpula militar se envolveu – e se subordinou – à liderança de um membro do baixo clero parlamentar?”
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