Mais de 80% das recomendações feitas ao Brasil pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos não foram cumpridas e quase a metade delas está em retrocesso, diz novo diagnóstico da ação do governo nesse setor. É a primeira vez que essa categoria de classificação foi observada no Brasil desde que o conselho foi instituído, em 2006, e passou a estabelecer recomendações e a monitorar avanços e problemas no mundo. As áreas mais vulneráveis são povos indígenas, meio ambiente e violência policial.
A cada quatro anos, os 193 países signatários devem prestar contas da situação dos direitos humanos ao Alto Comissariado por meio da Revisão Periódica Universal (RPU). Trata-se de um mecanismo internacional da ONU que cruza as informações entre as nações. No Brasil, o Coletivo RPU Brasil, uma coalizão de organizações da sociedade civil, é responsável pelo monitoramento da atuação do governo e pela elaboração de um diagnóstico da situação.
Das 242 recomendações, apenas uma foi cumprida pelo Brasil. Foi a que pedia a ratificação da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre trabalhadores domésticos.
“Normalmente, em nossas avaliações periódicas, usamos os termos ‘cumprida’, ‘parcialmente cumprida’ ou ‘pendente’ para determinar a situação de cada uma das recomendações”, explicou a coordenadora-geral da Gestos-Soropositividade, Comunicação e Gênero, Alessandra Nilo, uma das organizações integrantes do coletivo. “Mas diante do que está acontecendo na Amazônia, não dava para enquadrar em nenhuma dessas”, diz. “Tivemos que criar uma categoria nova, ‘em retrocesso'”
Conforme o levantamento, 46% de todas as recomendações feitas (242) estão em retrocesso. Outras 35% estão em pendência. Somadas, apontam 81% de recomendações não cumpridas. Só 17% dos tópicos estão em implementação, ainda que parcialmente. Apenas um está sendo, de fato, cumprido. Para o coletivo, “os dados são gravíssimos e inéditos” na história da participação do Brasil na revisão. O governo brasileiro deve apresentar oficialmente os seus dados em 8 de agosto, em Genebra, na Suíça.
Há dois anos, o Estado brasileiro apresentou dados desatualizados, inclusive referentes a governos anteriores e de organismos que já foram extintos”, diz Fernanda Lapa, diretora-executiva do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos, que coordena o coletivo. “Esperamos que, desta vez, o Estado pare de negar os fatos e apresente informações consistentes para debater com a sociedade civil.”
No levantamento feito pelo Coletivo RPU, as orientações da ONU foram sistematizadas por temas. São assuntos como povos indígenas e ambiente, saúde e vida digna, igualdade e não discriminação de gênero, racismo, violência policial, tortura, entre outros. A situação é mais grave para os povos indígenas e meio ambiente. Das 27 recomendações nesta área, nenhuma foi cumprida, nem mesmo parcialmente. E dezesseis delas estão em retrocesso.
Um dos pontos avaliados é a saúde indígena. Esse setor sofreu com redução de orçamento, reestruturação do programa Mais Médicos e a extinção da Secretaria Especial de Saúde Indígena. “Nosso relatório mostra forte acirramento dos ataques aos povos indígenas e seus territórios, com inúmeras violações de seus direitos por parte do Estado”, e diz o secretário da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Luis Donisete Grupioni.
“Na contramão das recomendações da ONU, o governo brasileiro adotou ações deliberadas contra órgãos federais que deveriam proteger e promover os direitos desses povos, promovendo o esfacelamento de políticas públicas diferenciadas. Todos os processos de reconhecimento territorial do País estão paralisados”, acrescenta.
Violência policial ‘alarmante’
A violência policial é outro tema considerado “em situação alarmante” pelo coletivo RPU. Em maio, operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio, deixou pelo menos 23 mortos, a segunda mais letal da história, atrás apenas da chacina do Jacarezinho, no ano passado. Também resultado de ação da polícia do Rio, teve 28 óbitos. Das sete recomendações voltadas à mitigação desses crimes, todas foram consideradas em retrocesso. O mesmo ocorre com as sete recomendações do relatório sobre tortura. Todas retrocederam.
“Essa violência também acontece no sistema prisional brasileiro, em que se usa a tortura como método institucional de controle da população negra, pobre e favelada, que é a maioria nesses espaços”, comentou o pesquisador da Justiça Global Antonio Neto. “E a resposta do Estado para isso é o enfraquecimento do sistema nacional de prevenção e combate á tortura.”
No relatório sobre saúde e vida digna, uma das treze recomendações avaliadas estava parcialmente cumprida: a de estratégias de combate ao HIV. Ainda assim, há problemas. Não houve aumento de recursos para estratégias de prevenção. Quatro recomendações sobre saúde reprodutiva foram consideradas ‘em retrocesso’. Vão do direito à assistência pré-natal ao acesso à interrupção voluntária da gravidez nos casos já previstos por lei.
Governo contesta metodologia
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em nota, informou que “os percentuais apresentados não possuem relação com a metodologia oficial do mecanismo RPU, que não trabalha com as categorias cumprida, em cumprimento, não cumprida e em retrocesso”.
Ainda de acordo com a nota da pasta, “as recomendações recebidas pelo Brasil têm caráter abrangente, com objetivos abertos e de difícil mensuração e, por vezes, representam uma situação ideal que o País deve buscar de forma contínua. O ministério assegura que vem acatando as recomendações e desenvolvido políticas públicas voltadas para os grandes temas”.
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